Activista brasileiro exilado cria projecto para promover negros e minorias em Portugal

O escritor e activista brasileiro Anderson França, um dos quatro exilados políticos do Governo Jair Bolsonaro, pretende iniciar em outubro com a primeira turma da filial da Universidade da Correria, uma filial do projecto de formação de afro-empreendedores que tinha no Brasil. Este escritor, que começou por comunicar com as comunidades através de blogs, foi convidado para ser roteirista e guionista da TV Globo e é autor do livro “Riu em Shamas” indicado ao maior prémio da literatura portuguesa, o Jabuti, conta que começou a receber ameaças logo após denunciar policiais que mataram o pedreiro Amarildo Sousa, morador da Favela da Rocinha, zona Sul do Rio de Janeiro. Depois de uma invasão em sua residência no Rio de Janeiro e de receber ameaças de morte, inclusive com oferecimento de 10 mil dólares de recompensa, teve de deixar o seu país. A recomeçar em Portugal, Anderson convida os cabo-verdianos residentes naquele país europeu a conhecerem e integrarem a Universidade da Correria.

– Por Constânça de Pina –

– Meu nome é Anderson França. Sou escritor e activista social brasileiro. E sou, neste momento, um dos quatro exilados políticos do Governo Bolsonaro no estrangeiro. Desde Dezembro do ano passado moro em Portugal. Há mais de 15 anos trabalho com questões de direitos humanos no Rio de Janeiro com pautas raciais e LGBT.

– Comecei a enfrentar alguns problemas em 2013 após fazer uma denúncia de policiais que mataram um morador da Favela da Rocinha, Zona sul do Rio de Janeiro, o pedreiro Amarildo de Souza. Desde esta altura recebo ameaças periódicas, inclusive sofri uma invasão na minha residência. Em 2017, passei a receber ameaças de morte, com oferecimento de dinheiro, o equivalente a 10 mil euros. Foram quase cinco anos de ameaças continuas e medo ali no Brasil, até sair do país com ascensão ao poder do actual Presidente Jair Bolsonaro.

– Sim. Mas é preciso que se saiba que o Brasil hoje passa por um momento de tensão racial muito grande e sou uma das vozes que defendia pautas de periferia, sendo uma delas as raciais. Então era um alvo.

Cheguei no dia 06 de Dezembro de 2018. Passei primeiro por Paris (França) até chegar a Portugal, apenas com quatro malas porque não podíamos trazer nada. Neste momento não temos mais nada no Brasil

– Vim com a minha esposa. Não temos filhos e nem património no Brasil neste momento. Toda a minha vida agora é em Portugal.

Sim, neste momento estou a trabalhar. Abri uma empresa de Educação, chamada de Universidade da Correria, que era um projecto que já desenvolvia no Brasil. É um projecto de formação de afro-empreendedores. Usamos a Educação para promover a autonomia, gerando renda. Já formamos cerca de cinco mil alunos negros e de periferia que conseguiram montar os seus negócios. Nós temos um discurso no Brasil de criar uma classe média negra. Foi este projecto que trouxemos para PT. Vamos trabalhar com as minorias, essencialmente emigrantes e mulheres LGBT.

-Esta terça-feira desta semana tivemos a primeira reunião para começar a primeira turma. A Universidade da Correria vai funcionar no Centro de Lisboa. Mas as formações só vão começar, efectivamente, no mês de Outubro.

Elegemos os países de língua portuguesa e a população negra emigrante residente em Portugal como o nosso principal público-alvo. Mas pensamos estender a nossa acção à outros povos, designadamente aos nepaleses, indianos-árabes e mulheres LGBT, sobretudo as em situação de violência doméstica ou que estão sozinhas como emigrantes.

É a promoção da autonomia. Todo o nosso projecto é baseado nos conceitos de Paulo Freire e Marcos Garvey, que era um pensador negro- americano. Ambos trabalharam no sentido de promover a autonomia para os povos oprimidos e negro. Considerando que o capitalismo foi fundado em cima da escravidão então é preciso criar uma educação que diminua o gap entre o povo branco que usufrui os benefícios do capitalismo e o negro que continua pobre. Nosso objectivo é económico, mas também é político.

Governo autocrata

– O Governo Bolsonaro é autocrata, reconhecido por vários países. Vem cometendo reiteradas violações dos direitos humanos e de liberdade de expressão, ameaçando jornalistas, comemorando inclusive a morte de pessoas na ditadura. Fez isso esta semana. Bolsonaro mostra que tem orgulho dos que foram mortos na ditadura. É uma pessoa que tem, de facto, desonrado o Gabinete da Presidência da República. Já é considerado inclusive o pedido da quebra de decoro, ou seja, de impechement. Infelizmente, hoje a comunidade internacional vê o Brasil da pior forma possível. E não lhes tiro razão. Bolsonaro não tem preparo, nem mesmo psicológico, para assumir o cargo que ocupa.

– No meu caso, sempre me disponho a falar com a imprensa e a mostrar aquilo que se passa actualmente no Brasil. Esta minha disposição é ampla. Cada jornalista do The Guardian, do Washington Post ou outro que precisa da minha colaboração para informar estou disponível para explicar pormenores do que acontece na política brasileira. O objectivo é dar visibilidade as questões que, a meu ver, a comunidade internacional precisa conhecer. Num segundo momento – sou recém-chegado na Europa – pretendo articular com as pessoas que entende a pauta racial e mostrar a necessidade de elevar uma classe média negra no Brasil. A nossa luta é muito diferente da luta da esquerda branca, que é burguesa. Eu venho da favela. Precisamos falar de uma esquerda que pensa por uma pauta racial. Então também temos o desafio de mostrar a comunidade internacional que a luta de Marielle Franco, vereadora morta no Complexo da Maré onde também começamos o nosso trabalho, que ela não foi morta porque era da esquerda. Ela foi morta porque era uma mulher negra. Hoje se você é um negro tem o dobro de chances de morrer assassinada no Brasil em relação ao homem branco. A nossa pauta é mostrar o que está a acontecer no Brasil e criar forças para receber outros brasileiros que estão chegando.

Luta solitária

Neste momento estou a fazer uma luta isolada. Isto porque percebi que existem poucos brasileiros interessados nesta especificidade de luta. Por exemplo, há uma esquerda que quer apenas libertar o Lula. Acho importante libertar o Luta, mas a favela continua sofrendo, continua tendo assassinatos. O povo indígena continua a morrer. Por isso, entendo que precisamos de uma pauta que seja maior que a libertação do Lula. Precisamos de outras pautas. Então é difícil encontrar na Europa um brasileiro que aceita as duas pautas, a negra e a de democracia. Os brasileiros que vivem na Europa são essencialmente brancos. Também não são da favela. Então, não há esta sensibilidade, apesar de serem de esquerda e progressista. Estas pessoas não aceitam a pauta negra, não entende a pauta da periferia e nem da favela. Por isso, estamos isolados.

– Existem dados internacionais da Anistia Internacional, do Artigo 19 e do Front Line, que são ongs que acompanham os autos de resistência, induzidos por violência letal não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. Estes dados mostram que 77 jovens negros são mortos por dia por violência letal no Brasil. Isto significa que há um extermínio, como política de Estado, contra o povo negro há mais de 40 anos. O povo negro não teve nenhum tipo de beneficio ou indemnização pelos quase 400 anos de escravidão que lhes foi imposto quando foi retirado da África e obrigado a trabalhar no Brasil por portugueses. Nenhum tipo de compensação foi dado ao povo negro. E isso reflete nos outros 120 anos da civilização brasileira na República em que os negros foram marginalizados, criminalizados e tornados pobres. Portanto, quando falamos de extermínio do povo negro não é só o extermino da sua vida por meio da violência letal. É também o extermino económico, social, de não acesso as escolas, ao trabalho qualificado, acesso a política. Pode ver que não há nenhum negro envolvido no alto escalão da política brasileira. Nem para a corrupção o negro entra ou é convidado. Todos os corruptos brasileiros são brancos. Estamos batendo de frente com uma questão funcional no Brasil, que é o racismo. O Brasil é um país que foi criado por racistas e permanece racista.

 Autos de resistência

– A ideia que se tem é que a morte de negros no Brasil, ou como dizes este “extermínio”, tem como principais autores as autoridades, nomeadamente a PM, através das incursões nas favelas. Confirma?

– A polícia militar brasileira é, de facto, a principal responsável pelos autos de resistência. Entra nas favelas, dispara a esmo, mata pessoas e diz depois que foi atacado. E isso vale como um documento oficial. A PM brasileira alega que mata em defesa da própria vida e não precisa provar nada. Este documento nos damos o nome de “Auto de resistência”. Então, o número de auto de resistência no Brasil é muito grande pela PM, o que comprova que é um dado oficioso do Estado. A PM do Rio, de São Paulo ou outra mata, de facto, muitas pessoas e não precisa provar que estas eram inocentes ou não.

– Neste momento existem muitas organizações não governamentais e activistas no Brasil. Felizmente é uma área política que está bem articulada e que tenta dar a estas pessoas assistência jurídica e, principalmente, o confronto política que está neste momento muito mais debilitado por conta da presença de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Isto porque, sabe-se, que o Presidente está envolvido directamente com as milícias armadas, que são responsáveis pela morte destas pessoas nas favelas.

– Praticamente. O cenário para a democracia no Brasil é ruim, mas para o povo negro é pior. O negro no Brasil sofre na democracia e na ditadura.

– É verdade. Hoje existe uma bancada evangélica no Congresso que apoia pautas fundamentalistas e conservadores. São chamadas de bancadas da “Bíblia, do Boi e da Bala”. São grande agropecuários, grandes produtores e importadores de armas e evangélicos fundamentalistas que têm pautas retrogradas e racistas. Criminalizam o candomblé, a umbanda e as praticas culturais do povo africano. E isso dificulta muito que o Brasil volte as suas raízes, que são multiculturais. De facto, está formado no congresso uma grande bancada de retrocesso.

Sim, esta é uma pratica das igrejas evangélicas. Conseguiram praticamente institucionalizar estes ataques. Têm representantes no Congresso Nacional, que propagam este odio. É inadmissível que praticas milenares do continente africano sejam criminalizadas no Brasil, que não seria um país sem a presença do povo africano. 60% da população é negra. E isso é inadmissível num país continental como o nosso. No entanto, estes crimes continuam a ser praticados.

– Este tipo de crime nunca é punido no Brasil. Por outro lado, a policia não tem interesse em descobrir quem são os responsáveis. E isso porque a própria policia tem no seu seio muitos evangélicos . As milícias são evangélicas, e até os traficantes hoje são evangélicos.

Escritor engajado

– Comecei a escrever em 2009 em blogs, comunicando com as comunidades onde trabalhava sobretudo factos culturais, do rap, do hip hop, etc. Sou muito engajado nestas linhas de trabalho. Também escrevia muito sobre a nossa ancestralidade nordestina. Estes meus escritos foram para as redes sociais e ganharam vulto. Até que a TV Globo me chamou para ser roteirista e guionista. Paralelamente, fazia participações em longa-metragem e filmes. Por exemplo, no audiovisual já participei de grandes seriados de comedia no Brasil baseados em favelas e em histórias populares, caso por exemplo do “Vai qui Cola”, que é um dos principais programas de comédia popular do Brasil. Também escrevi um livro intitulado “Riu em Shamas”, que foi indicado ao maior prémio da literatura portuguesa no Brasil, o Jabuti em 2017. Actuando na TV Globo, trabalhei com o escritor e actor Lázaro Ramos, que é um grande actor brasileiro negro do núcleo de escrita racial e que valoriza as questões raciais na TV. Tenho também algumas longas-metragens que escrevi e que estão neste momento em processo de produção. Ainda não foram lançados porque estão em processo de captação de recursos. Mas é possível que não haja a produção deles porque a Ancine – Agência Responsável pelo Cinema está agora sob controlo do Bolsonaro. Então é provável que este não libere mais recurso para produções para isso. Inclusive porque num dos filmes nos criticamos claramente o racismo no Brasil. Então talvez ele não queira que estes filmes saem.

– Sim, graças ao meu trabalho como escritor, conseguimos chegar a lugar onde antes não éramos ouvidos. Conseguimos chegar a intelectualidade branca brasileira que tem muito preconceito connosco. Isto porque viemos das favelas e falamos uma linguagem de gíria, que é influenciada pelo ioruba e eles não gostam disso. Mas começamos a chegar lá. Então começaram a nos ouvir.

-Claro que sim. Sei que o escritor Lázaro Ramos esteve em Cabo Verde e fiquei muito feliz. Trabalhei muito na casa dele. É uma pessoa antenada em questões de raça. Tive muito orgulho em trabalhar com ele. Eu também gostaria muito de viajar para outros países para falar do Brasil que estamos vivendo. O que acontece, no meu caso, é que ainda não tenho os contactos para fazer este tipo de trabalho. Mas estou aberto. Irei com muito gosto porque esta é a minha missão de vida. Acabei de chegar em Portugal, estou correndo para pagar contas e arrumar trabalho. Mas estou aqui para trabalhar e para dar a conhecer à comunidade internacional tudo de ruim que está a acontecer no Brasil.

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