O contencioso judicial que opôs o jornalista José Leite e a RTC durante doze anos, por causa da suspensão do programa de debate Noite Ilustrada, conheceu o seu ponto final no dia 19 de Fevereiro, data em que o Supremo Tribunal de Justiça deu a conhecer a sua posição sobre um recurso interposto pela defesa da empresa pública de comunicação social à sentença da primeira instância. No acórdão, esse tribunal superior, que apreciou apenas o cumprimento do prazo legal para a instauração do processo disciplinar, confirma que o mesmo foi ultrapassado e que a RTC foi incapaz de mostrar com factos a complexidade do caso para justificar o pedido de prorrogação do tempo. Deste modo, o recurso foi considerado improcedente.
Para o STJ, apesar de ter havido um despacho favorável à dilação do prazo por mais 45 dias, fica claro que o processo não era complexo e que esse expediente foi uma tentativa de escape da instrutora, que perdeu tempo precioso sem mexer uma palha para dar o devido andamento ao comboio. “Parece evidente que o despacho que defere o pedido de prorrogação é meramente redundante, pois que se limita a remeter para a norma legal que prevê a possibilidade de se prorrogar o prazo para se ultimar a instrução em caso de grande complexidade. Já a caracterização dessa situação de grande complexidade é completamente omitida”, realça o acórdão do STJ. Conforme o relator Benfeito Ramos, mesmo com uma “leitura generosa” é impossível descobrir as razões plausíveis para que o contencioso por detrás do processo-disciplinar fosse considerado complexo. Até porque as testemunhas arroladas pela RTC são funcionários da casa, pelo que poderiam ser dispensados para serem ouvidos quando a empresa bem entendesse.
Esse juiz do STJ apoia-se nos factos para mostrar que a culpa da demora é da própria RTC. Como explica, a instrutora do processo foi nomeada por despacho de 2 de Março de 2007 e foi informada disso no dia seguinte. No entanto, a primeira diligência para a audição de José Leite como arguido e de outros intervenientes só aconteceu nos dias 29 e 30 do mesmo mês, ou seja, quase um mês depois. Entretanto, volta a haver um novo hiato sem que aconteça qualquer outra diligência, quando o prazo legal para a instauração do processo era de 45 dias.
“Coincidentemente, só no dia 12 de Abril, o mesmo dia em que é feito o requerimento para a prorrogação do prazo, é que a instrutora solicita a presença de mais três funcionários da empresa para serem ouvidos no âmbito do processo em causa”, relata o acórdão, sublinhando que nada obstava que esses intervenientes fossem ouvidos com maior antecedência.
Diz o STJ que a defesa da RTC faz um esforço para realçar a “grande complexidade” do caso, fazendo alusão a 15 testemunhas e à disponibilização do processo para consulta pelo arguido, mas que tudo isso foi um “esforço inglório”. Na verdade, frisa esse tribunal, no dia em que foi pedido o aumento do prazo, tinham sido ouvidos apenas o arguido – José Leite – e duas testemunhas em S. Vicente. Estava, entretanto, previsto o interrogatório a mais 3 testemunhas na cidade da Praia. “E foram estas as únicas pessoas que foram ouvidas em declarações, antes de se ultimar a instrução”, afirma o STJ. Por conseguinte, o Supremo Tribunal considerou que faltaram argumentos para se declarar o processo de grande complexidade e o consequente direito para o aumento do prazo de instrução em outros 45 dias.
Mérito da causa
Este processo acabou por deixar de fora o mérito da sua causa: os motivos da suspensão tempestiva do programa radiofónico Noite Ilustrada, concebido e apresentado pelo autor. A cada Domingo, José Leite levava convidados para o estúdio para debaterem temas da actualidade sociopolítica, com a participação do público via telefone. Só que por essa mesma altura, a RCV decidiu lançar o programa “Centro da Questão”, cujo spot dizia que nesse novo espaço radiofónico é que “acontecem os debates que interessam à nação”. Para José Leite, essa frase era discriminatória, pois ignorava os demais programas existentes na estação nacional, como era o caso de Noite Ilustrada. Deste modo, por considerar essa situação inadmissível, sugeriu a rectificação do spot promocional. Só que a sua preocupação não encontrou acolhimento na empresa, pelo que José Leite entendeu não haver mais condições para manter o “Noite Ilustrada” no ar, apesar das indicações superiores contrárias à sua decisão.
Esta atitude provocou um choque entre o jornalista e o director da RCV, que na altura era Carlos Santos, actual presidente da AJOC, que passaram um tempo a fazer trocas de mensagens sobre o assunto. A certo ponto, Carlos Santos sentiu-se ofendido e apresentou uma participação contra José Leite junto do Conselho de Administração da RTC. Só que, conforme vem expresso no acórdão do STJ, a RTC mandou instaurar um processo-disciplinar ao jornalista, mas sem o ouvir. Para a defesa do acusado, em momento algum Leite desobedeceu a entidade empregadora, pelo que não havia razão para ser processado. Logo, o único motivo dessa medida, na sua percepção, foi denegrir a imagem do visado, tratando-o como um “mero servidor, sem vontade nem personalidade”.
Aliás, a defesa refere que José Leite foi insultado na comunicação social, na sequência de atitudes “arrogantes” da RTC e seus colaboradores, pelo que exigiu uma indemnização nunca inferior a mil contos por danos morais. No entanto, a primeira instância e o STJ cingiram a análise do caso à questão do prazo de instrução e negaram pronunciar-se sobre o pedido de reparo. Abordada sobre isso, a advogada Vanda Évora esclarece que em muitos processos é quase impossível a uma vítima provar os prejuízos que uma determinação situação causou à sua imagem, como foi o caso em apresso.
Caído o pano sobre o assunto, o jornalista José Leite mostra-se “parcialmente” satisfeito. É que, para ele, o cerne da questão ficou marginalizado, muito por causa de a sua própria defesa ter suscitado o problema do incumprimento do prazo de instrução, o que acabou por prevalecer. Para o jornalista, seria interessante e muito útil para o exercício da profissão um debate sobre o aspecto que deu origem ao contencioso e que acaba por extravasar-se para a área do direito de autor e a própria relação laboral.
“Saúdo o termo deste processo, mas estranho o tempo que consumiu: sete anos na primeira instância e mais cinco no Supremo Tribunal de Justiça”, enfatiza Leite, deixando claro que foi difícil aguentar o processo durante tanto tempo.
Segundo Vanda Évora, defensora do jornalista, caso José Leite tivesse sido despedido, a empresa teria certamente de o readmitir, decorridos 12 anos. Refira-se que Leite foi suspenso por quinze dias na sequência do processo-disciplinar e que a justiça obriga a RTC a pagar-lhe o salário referente a esse período.
Kim-Zé Brito