Emigrante, ex-autarca e Sociólogo Miguel da Luz afirma que lei do poder local nunca foi implementado em Cabo Verde

Emigrante na Noruega desde 1984, Miguel da Luz, natural de Santo Antão, já vivenciou experiências marcantes. Trabalhou para a ong internacional Save The Children em Luanda, responsável por trazer o Planeamento Materno Infantil/Planeamento Familiar (PMI/PF) para Cabo Verde, em contexto de conflito armado entre o MPLA e a UNITA, foi eleito municipal em Stangepor dois mandatos e é há muitos anos consultor do município de Hamar. Nesta entrevista ao Mindelinsite, este Sociólogo de formação e estudioso por opção, acumulou experiências que lhe permite fazer uma afirmação ousada: a lei do poder local, votada em 1991/2, nunca chegou a ser implementada em Cabo Verde. É por isso que, diz, ainda os municípios funcionam na dependência do Governo. Talvez por isso se posiciona como um defensor da regionalização, para mais emprego, mais oportunidades, mais saneamento mas, especialmente, para evitar o despovoamento das ilhas e municípios periféricos.  

– Por Constança de Pina – 

A saga deste emigrante começou há 36 anos, quando viajou para Noruega para juntar-se ao pai, que trabalhava naquele país nórdico desde a década de 1960, após concluir os estudos em Cabo Verde. Apesar do choque térmico – saiu de  um clima quente para valores negativos -, rapidamente se transformou em um estudante-trabalhador.“Acho que isso aconteceu porque tracei uma meta desde o início. Emigrei não para aventurar. Tinha o objectivo de estudar e formar. Fiz uma licenciatura e um mestrado em Sociologia. Meu primeiro trabalho na minha área foi na ong Save The Children, que tem base na Suécia, Noruega e Inglaterra. É a mesma ong que trouxe o PMI/PF para Cabo Verde depois da independência. Estive seis meses em Luanda”, relata. 

E este foi um trabalho que marcou Miguel da Luz para toda a vida porque, como explica, na altura a situação em Angola era caótica. “Vivi a situação desta ex-colónia de perto. O MPLA e a UNITA tinha assinado um acordo de paz, mas a cidade ainda estava marcada pelos acontecimentos decorrentes do  longo conflito armado. Era algo que se vivia diariamente. Coisa natural era ouvir tiroteios nas ruas de Luanda. Era uma sociedade muito militarizada, dividida e com muita pobreza e miséria. A nossa actuação era em um bairro denominado Rocha Pinto, que acolhia os deslocados. Tinha mais de 200 mil pessoas, mas as habitações eram provisórias”, descreve. 

De regresso à Noruega, Miguel foi trabalhar no município de Hamar como director do departamento para integração de refugiados, seguidamente como consultor, função que ocupa até hoje. Passou pelos assuntos sociais, planeamento estratégico, habitação e urbanismo, realidades em tudo diferente de Cabo Verde. Hoje trabalha no departamento de recursos humano. “Na Noruega Governo Local tem responsabilidades para com os seus munícipes e responde por todas as áreas, desde o planeamento familiar, programas de vacinação, jardim de infância, escola do ensino básico, até a morte. Os municípios tem grande autonomia. Em 2007 fui convidado para integrar um projecto politico e fui eleito. Fiz dois mandatos no município de residência em Stange. Esta experiência deu-me a oportunidade de melhor entender aquela sociedade. Vi a oposição e a situação a trabalharem em harmonia. Foi uma experiência muito rica.”

Lei de Autarquia Local para inglês ver

Apesar de realidades diferentes, mas com base na sua experiência Miguel diz que a Lei da Autarquia Local nunca foi implementada no país. “Enquanto eleito municipal na Noruega, tive curiosidade de ler a Lei de Autarquia Local de Cabo Verde, votada em 1991/2. É uma lei que dá aos municípios muita responsabilidade e também independência. Mas, do meu ponto de vista, nunca foi aplicada. Por isso os municípios dependem tanto do Governo, sobretudo a nível financeiro. No município onde trabalho tem um orçamento anual de 250 milhões de euros, grande parte proveniente das arrecadações locais”, pontua, realçando que é o município que faz a sua receita, que complementa com uma pequena verba do Governo.

Questionado se mais autonomia seria melhor para S. Vicente, Miguel da Luz admite que ainda não conseguiu compreender o que se pretende em Cabo Verde. Sem querer fazer comparação, este emigrante garante que Noruega tem uma forte política de regionalização, que tem como um dos principais focos evitar o despovoamento das zonas periféricos. Com este propósito, diz, há todo uma preocupação em descentralizar instituições e serviços por forma a levar postos de trabalho para as regiões mais afastadas que levam consigo novas sinergias para o comércio local, jardins, escolas e outros. 

No caso de Cabo Verde, diz, já se sente o despovoamento em algumas regiões de Santo Antão, por exemplo, não obstante as reivindicações e queixas dos autarcas da ilha. Este adverte no entanto que não se pode ficar por queixas. É preciso trabalhar para reverter este fenómeno. “Não tenho a mínima ideia em como se pode reverter isso. Mas sei que há muita experiência lá fora que podia ser adaptada no país e na nossa diáspora existe muita competência, pessoas que já trabalharam nesta área que poderiam ser aproveitadas. Acho que a sociedade civil também precisa ser mais activa e dar voz aos jovens. Cabo Verde já desenvolveu muito, mas precisa começar a fazer um planos a longo prazo, com uma visão para as gerações vindouras. Cabo Verde pertence aos nossos filhos e netos, temos o dever de lhes proporcionar uma sociedade melhor da que recebemos. É preciso que os político elegem como prioridade trabalhar por uma sociedade melhor.”

Miguel da Luz assume ter uma perspectiva optimista em relação à Cabo Verde, muito por conta do clima e da estabilidade. Mas lamenta que ainda todo este potencial não esteja a ser explorado. “Por exemplo, ainda temos um conceito primitivo do turismo. Vemos o turista como uma pessoa branca que vem para o nosso país esbanjar dinheiro. Mas o turista pode ser apenas pessoa que quer uma experiência diferente em um lugar diferente. Ainda precisamos fazer ajustes na nossa forma de pensar o turismo,” constata. 

Outra área critica, a seu ver, é o saneamento na generalidade, com especial atenção no tratamento do lixo produzido nas ilhas. Este diz que é com tristeza que, diariamente, vê a queima do lixo na Lixeira de S. Vicente e a beira de estradas em outras ilhas. “É uma aberração. Qualquer criança percebe que aquilo é erradíssimo. Porquê é que continua, intencionalmente a fazer algo tão desastroso para a saúde e para o meio ambiente?”, interroga, acrescentando que, inconformado com este facto, já apresentou as autoridades locais e nacionais propostas de projectos neste sentido mas, infelizmente, encontrou sempre orelhas moucas. “É estranho um contributo para o desenvolvimento de Cabo Verde não tenha aceitação”, finaliza.

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