A Tempestade Perfeita

Por: Rosário Luz

Segundo Francis Fukuyama, nada como uma boa guerra para dar um up de eficácia na governação de um país. Isto porque o imperativo de vencer – sob pena de perecer – secundarizada de imediato as redes de interesse e conveniência que vigoram em normalidade. As epidemias são parecidas com as guerras: para além de matar, perturbam as rotinas mais básicas de produção e consumo; sobrecarregam ou inviabilizam os serviços e as infraestruturas públicas; abatem física e psicologicamente a força de trabalho; destroem poupanças; e refreiam o investimento. Tal como ganhar uma guerra, dominar uma epidemia no período mais curto possível torna-se na única prioridade para o Estado. A questão é a capacidade nacional degestão

Há uma certa homogeneidade de recursos entre os países que foram atingidos por surtos significativos de Covid-19.  Até 31 de Março, o continente Africano inteiro totalizava apenas 5400 casos. Dos países com registos elevados de contágio, o Irão, com cerca de 44000 casos, é o único que se encontra no escalão de países de desenvolvimento médio. De resto, os países mais afetados pela pandemia de Covid-19 encontram-se entre os G20 – as 19 maiores potências económicas mundiais, mais a União Europeia. 

A República Popular da China, o foco original da pandemia, registou cerca de 81000 casos até à data. Mas desse total, cerca de 68000 foram na província de Hubei, o locus do surto original. Hong Kong registou apenas umas centenas de casos; e Macau, umas dezenas. Ou seja, o surto foi largamente contido na província de origem, foi eficazmente controlado, e hoje apresenta um número reduzido de novos infectados. A Coreia do Sul – cuja rápida progressão inicial foi a grande preocupação no começo da pandemia – regista atualmente um modesto total de 9500 casos. De resto, o Japão, a Tailândia, o Vietname – e todo o leste asiático circundante – mantêm-se abaixo dos 2000 casos. 

A Itália apresenta o cenário oposto. Com mais de 100000 casos, para 60 milhões de habitantes, já ultrapassou largamente o total da China – que têm uma população de 1.4 mil milhões. Mas longe de controlar o pico de contágios – tal como o fez rapidamente a China –  a Itália continua, de forma sustentada, a apresentar milhares de novos casos diários. Para além disso, ao contrário da contenção rápida conseguida pelos vizinhos da China no leste asiático, os vizinhos da Itália no ocidente europeu seguiram-lhe imediatamente as pisadas, com uma multiplicidade de surtos nacionais na ordem das dezenas de milhares de infectados.

Ou seja, apesar da relativa uniformidade de recursos e padrões de desenvolvimento, os resultados conseguidos pelos diferentes países e regiões na gestão desta calamidade variam drasticamente. Se essa variação não se deve a uma discrepância significativa de recursos materiais, então deve-se a uma discrepância de fatores demográficos e, fundamentalmente, imateriais: tradições culturais; políticas públicas de saúde; e as opções específicas de gestão da conjuntura feitas por cada governo nacional. 

Muitos analistas apontam a epidemia de SARS, que grassou o leste asiático em 2003, como a chave do sucesso regional na gestão da atual pandemia. Um dos resultados do SARS 2003 foi um conjunto de  investimentos, por toda a região, em infraestruturas e processos especializados na contenção e tratamento de doenças infeciosas. A região preparou-se para uma eventualidade desta magnitude; reconheceu imediatamenteo potencial destrutivo do Covid-19; e implementou medidas restritivas abrangentes logo após as primeiras notícias sobre o surto em Wuhan. 

Ao contrário da China, do Japão e da Coreia do Sul, a Itália não beneficiou de um aprendizado na escola SARS 2003; não fez investimentos em infraestruturas hospitalares especializadas – muito pelo contrário, o estado.it desinvestiu progressivamente no sistema de saúde pública; tem a segunda população mais velha do planeta; as famílias mantêm um contacto inter-geracional intenso; impera o hábito do cumprimento pelo beijo, inclusive entre o sexo masculino; e tanto as autoridades quanto a população hesitaram longamente na adoção de medidas de distanciamento social. Uma tempestade perfeita.

A expressão – do inglês perfect storm, um fenómeno meteorológico de grande magnitude – tornou-se na metáfora de eleição para situações onde uma confluência singular de fatores económicos, demográficos, culturais e conjunturais exacerba a gravidade de uma crise. Cabo Verde não faz parte do G20; não passamos de mendigos, que dependem da ajuda internacional para subsistir – quanto mais para superar uma contingência desta gravidade. Temos uma população jovem, mas um convívio inter-geracional intenso; somos ainda mais melosos no cumprimentar do que os Italianos; e temos uma necessidade ainda maior de passear na rua. Se o atendimento nos hospitais centrais.cv desestrutura-se perante os nossos surtos anuais de viroses de brincadeira, o que nos poderá salvarda tempestade? 

A 20 de Março, quando o primeiro caso positivo foi identificado na Boa Vista – e foi reportado que trabalhadores do hotel onde o paciente estava hospedado tinham regressado às as suas ilhas de origem antes da imposição da quarentena – todo o país temeu que a progressão de contágios.cv fosse muito mais rápida. Contudo, onze dias depois, só temos seis casos confirmados. É certo que o número real  de casos positivos deve ser muito superior a esse. Mas somos um país pequeno, onde o disse-que-disse circula solto, e o facto é que ainda não há relatos de contágio; e ainda não se verificou qualquer pressão anormal sobre o sistema hospitalar. Ainda não sentimos a tempestade. 

A minha sensação pessoal é que, apesar de todos os perigos que a conjuntura representa objetivamente para as frágeis estruturas.cv, também há uma confluência singular de factores a nosso favor. Um dos fundamentais é algo que permanece um mistério; seja clima, seja feitiço, é algo que partilhamos com o resto da África subsaariana – e que caberá à comunidade científica, um dia,  determinar. Mas o facto é que registamos uma percentagem ínfima dos casos mundiais, apesar do nosso primeiro registo positivo ter sido confirmado logo em finais de Fevereiro, na Nigéria – o país mais populoso do continente.

O que quer que seja que está a atrasar a deflagração de um surto significativo de Covid-19 em África, esse fator comprou-nos o stock mais precioso que um país pode ter numa pandemia: o tempo. Não falo de tempo para a preparação clínica e logística, que é obviamente fundamental, mas da qual não percebo nada; falo do tempo necessário para a preparação política, administrativa, social e psicológica do país. Do tempo necessário para o Governo implementar e para os cidadãos interiorizarem as medidas para debelar a tempestade – ou, quiçá, com muito juízo e muita, muita sorte, dela nos resguardarmos. 

A China e o leste asiático foram preparados para esta tempestade pelo SARS 2003; a Europa está a ser acusada de não ter usado o tempo e os exemplos da Ásia para se preparar, antes da batida inevitável da pandemia às suas portas; e agora, os EUA estão a ser acusados de não ter aprendido com a Europa. Talvez aqui na terrinha – por sermos tão pequenos, tão impressionáveis, e tão conscientes da nossa fragilidade – tenhamos feito melhor uso do tempo que, abençoadamente, nos foi ofertado pelo tal fator misterioso. Talvez

Desde meados de Fevereiro, consumimos diariamente os relatos de pesadelo que nos chegam da Europa dos nossos sonhos; da Europa, a ricalhaça. Aterrorizados, um número significativo de cidadãos.cv caiu muito rapidamente em si sobre a dimensão do perigo que nos confronta. O resultado foi que a opinião pública começou pedir ao Governo a imposição de medidas restritivas muito antes do registo do primeiro caso em território nacional. E – ao contrário de potências G20 como a Itália, os Estados Unidos e o Brasil – o Governo da nossa humilde República tomou efetivamente um conjunto de medidas seminais antes desse primeiro registo. 

Para as nossas perspetivas de gestão local da pandemia, o ganho mais valioso deste mês e meio em que testemunhamos a aflição do mundo desenvolvido, foi a sua ação sobre a psique geralmente indisciplinada e pê d’katxorr do Homo Cabo-verdianus. Progressivamente, uma parcela importante da sociedade.cv interiorizou a necessidade absoluta de distanciamento social.E ficou em casa, em vez de ir à praia. 

Laradas de crioulos – os que puderam, claro – colocaram-se em isolamento voluntário muito antes as autoridades implementarem medidas oficiais de distanciamento social, ou declararem estado de emergência. Mantiveram a família em casa; chatearam os amigos para ficar em casa; e apelaram à comunidade online por responsabilidade social. Nem todos o fizeram; mas muitos sim. Cada vez mais. Serão em número e em tempo suficiente para nos livrar de uma tempestade de grande magnitude, que nos quebraria certamente? Veremos. 

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