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“Amílcar Cabral: Uma ponte entre Itália e África”

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É este o título do livro de Filomeno Lopes, publicado no ano do Centenário de Amílcar Cabral, que vai ser reapresentado no próximo dia 12 de Setembro na prestigiosa sala Carroccio da Camara Municipal de Roma. O livro foi lançado, inicialmente, no passado dia 30 de Abril, na prestigiosa Sala Verdi do Palazzo Chigi, sede do governo e del Parlamento italiano. O evento foi uma ocasião para prestar homenagem a Amílcar Cabral, no centenário do seu nascimento e refletir sobre o tema “A diplomacia italiana e a contribuição das religiões para a construção de paz nos países de língua portuguesa.”

Por: Maria de Lourdes Jesus

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Vamos conhecer um pouco do conteúdo do livro, através da entrevista que o Dr. Lopes nos concedeu. Sobre Amílcar Cabral já foram publicados muitos livros de autores de nacionalidades diferentes, artigos, documentários, documentos de simpósios, Summit, conferencias e debates, em quase todo mundo.

Para além de homenagear Cabral, qual é a contribuição do seu livro em relação aos estudos que vem sendo realizados?

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“A minha abordagem de Cabral é pretamente filosófica; e, por conseguinte, menos concentrada sobre a sua pessoa e mais orientada sobre os seus textos escritos de que eu desconhecia até há bem pouco tempo. Claro, Cabral não era um filósofo de profissão, mas foi capaz de teorizar, a meu ver, um paradigma epistemológico com o qual orientou todo o processo da luta de libertação nas suas diversas fases de resistência cultural, resistência política, resistência económica e resistência armada. Tratou-se então para mim, neste livro de assumir este paradigma no debate sobre a filosofia africana nos PALOP e com ele perspectivar possíveis horizontes de respostas à alguns dos desafios históricos com que estão confrontados hoje em dia os povos e países africanos em geral e de modo particular os povos dos PALOP. Não se trata porém de produzir uma filosofia do pensamento político de Cabral, como foi por exemplo o caso de Tsenay Serequerberhan; mas trazer Cabral no debate filosófico dos PALOP numa perspetiva da filosofia da história e historicidade africana em geral e dos PALOP em particular”.

O Centenário de Cabral está a ser celebrado em Cabo Verde, em Guiné-Bissau, na diáspora e em muitos outros países. Acontece que a nível oficial, (seja em Cabo Verde que em Guiné-Bissau), essa celebração ainda não recebeu a devida atenção que merece.

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“Cabral foi internacionalmente reconhecido como o segundo maior líder do século XX. Acho que este aspecto seja também reconhecido por ambos os países, seja em Cabo Verde como também na Guiné-Bissau. Mas o importante é que Cabral está bem gravado no coração do povo destes dois países irmãos e o resto são os oportunismos políticos que vão surgindo de vez em quando. Por outro lado, há que considerar também a difícil dimensão de relação entre os pais e filhos e filhas que carateriza estes dois povos em relação não só a Cabral mas a toda uma geração de combatentes da liberdade da Pátria; por outro lado sabemos muito pouco do pensamento coral de Amílcar, da sua geração de luta, dos valores da luta de libertação por ele conduzido etc. O que obtivemos até agora sobre esse assunto é de uma ‘independência-chave-nas-mãos’ e não ‘independência-chave-na-cabeça e-no-coração’ dos filhos e filhas da revolução da CONCP como devia ser. Há, por conseguinte, ainda muito por aprender e realizar neste campo gnoseológico, educativo e pedagógico sobre a história e historicidade do processo da luta de libertação da CONCP. Neste sentido, vejo importante o aporte da filosofia que foi até agora o percurso menos explorado nas reflexões sobre o pensamento de Amílcar Cabral e do processo da luta de libertação dos PALOP”.

No seu livro definiu Cabral como um monumento histórico dos nossos tempos. Um líder internacionalmente reconhecido, mas contestado em Guiné-Bissau e em Cabo Verde por pessoas que negam mesmo a sua liderança na tentativa de diminuir e desacreditar a sua figura. Essa é a chamada posição negacionista da história. Como pensa de contrastar essa posição? Qual é a sua proposta pedagógica para investir numa educação capaz de restituir aos jovens e aos dois países a figura desse grande homem que foi Amílcar Cabral?

“Acho que no geral não é só relativo a pessoa de Cabral em si, mas também a geração que ele representou e liderou e que constitui para nós hoje um enorme desafio em termos valoriais, mas que nós desconhecemos na essência por diversas razões. Quando há pouco conhecimento de causa é normal que haja também muito aproveitamento político. Mas o essencial é fazer com que todo este debate que existe seja legítimo, enquanto constitui um debate entre os filhos e filhas acerca da melhor definição simbólica que querem atribuir ao próprio pai e a sua geração na sua vida quotidiana perante a África e perante ao mundo. Daí a importância de encontrar e incentivar mecanismos pedagógicos de diálogo inter-geracional em volta da história e historicidade dos PALOP, o desafio de elaborar e fazer conhecer aos jovens em África e na diáspora “as humanidades clássicas da CONCP” que orientaram o processo da luta de libertação dos PALOP. Acho que este seja o maior desafio que não podemos abdicar, a luta que não podemos perder”.

Escritor Filomeno Lopes

Falamos agora de Amílcar Cabral e a diáspora da Guiné e Cabo Verde em Itália. Acha que essas duas comunidades conhecem e valorizam a figura de Amílcar Cabral?

“Acho que a diáspora cabo-verdiana na Itália fez até agora muito mais neste sentido em relação a diáspora bissau-guineense residente na Itália e por diversas razões que não estou aqui agora a mencionar. Eu mesmo, tudo quanto aprendi foi graças aos esforços levados a cabo pela comunidade cabo-verdiana (OMCVI, Associação Tabanka e outras) para fazer conhecer a figura e obra de Cabral. Sou um produto deste esforço da comunidade e de que sou orgulhoso e serei eternamente grato”.

Estamos em Itália, Roma. Qual foi a grande contribuição deste país durante o período da luta armada pela independência da Guiné e Cabo Verde?

“A Itália não foi o único dos países que faziam parte da OTAN, mas cujos povos se mobilizaram para abraçar a causa da CONCP no seu conjunto. Mas foi o lugar decisivo não só para a elaboração do paradigma epistemológico do processo da luta de libertação (a renascença cultural italiana que sempre constituiu um ponto de referência importante para Cabral), como para corrigir e comunicar uma nova visão e princípio de solidariedade entre os movimentos de libertação e os povos dos países ocidentais (solidariedade no conhecimento e vice-versa conhecimento na solidariedade e portanto a cultura como elemento fundante de uma solidariedade histórica).

Mas foi também decisivo para o fim da resistência armada como tal e a criação de condições diplomáticas para a conquista efetiva da independência dos PALOP, graças sobretudo a Conferência de solidariedade com a CONCP que foi organizada aqui em Roma em Julho de 1970 e que culminou com a audiência concedida por Sua Santidade o Papa Paulo VI aos três líderes dos movimentos de libertação: Agostinho Neto (MPLA), Amílcar Cabral (PAIGC) e Marcelino dos Santos (FRELIMO e Presidente da CONCP).

Após a audiência, Cabral que chefiou a delegação afirmou na conferência de imprensa que em apenas vinte minutos de audiência a Igreja Católica tinha feito para eles tudo quanto a comunidade internacional não tinha conseguido fazer em onze anos de resistência armada, onze anos de luta de libertação; e que sobretudo, aquele ato tinha sido “uma grande vitoria que jamais” eles teriam conseguido com “nenhuma força das armas”; enfim a Itália foi para a CONCP um lugar epistemológico, de solidariedade efetiva, de intercâmbio cultural e político e de travessia diplomática decisiva para uma nova fase da conquista da independência dos PALOP em geral”.

Quais os nomes das figuras italianas que marcaram a história da luta de libertação?

“Foram tantas figuras, entre políticos, Partidos, movimentos, sindicatos, intelectuais, jornalistas, fotógrafos (Bruna Polimeni), cineastas etc. etc. A lista seria longa, mas trato de alguns no livro”.

No livro trata também a crise da leadership africana. Acha que essa crise envolve Guiné e Cabo Verde? Qual vai ser a fonte de Liderança, para superar essa crise?

“Falo da crise de liderança enquanto um dos males do continente africano em geral hoje em dia e de modo particular na Guiné-Bissau e apresento a visão e obra de liderança de Cabral como exemplo para um debate filosófico mais alargado sobre esta delicada questão. Grande parte do livro é dedicada a esta figura de liderança que Amílcar representou para a África e para o mundo; mas falo também da figura de líder que representaram para a Africa e o mundo, Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba, Mandela etc., mas sempre numa dimensão de filosofia da história e historicidade africana na conjuntura política e geopolítica mundial hodierna”.

8 de Março, dia Internacional das Mulheres e 27 o das Mulheres cabo-verdianas já passaram. A seu ver qual era a visão de Cabral em relação à desigualdade de género, à emancipação das mulheres?

“8 de Março representa um dia de conquista histórica para as mulheres do mundo inteiro. E é precisamente este aspeto de conquista do próprio espaço na construção da historia e historicidade da humanidade em geral que constitui o ponto central daquilo que no livro eu chamo uma visão pedagógica da emancipação feminina de Cabral: a saber que tinha que ser fruto de uma luta ao lado dos homens, não algo que iria “cair do céu”, fruto de um dom concedido pelos homens; portanto a luta conjunta, realizada lado a lado com os homens do sexo masculino criou raízes de emancipação de ambos, revelando o valor e a força imprescindível da mulher enquanto protagonista em todo o processo da luta de libertação e de emancipação humana em geral.

No dia 30 de Outubro (2023) os deputados do Parlamento cabo-verdiano, que sustentam o governo de MPD, chumbaram uma resolução apresentada pelo PAICV (oposição) para a celebração oficial do centenário de Amilcar Cabral no dia 12 de Setembro 2024. A reação da sociedade civil na diáspora foi singular. A historiadora Angela Coutinho lançou uma petição a celebração oficial, ao mais alto nível, do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, em Setembro de 2024. Uma segunda petição foi apresentada na Embaixada de Cabo Verde no Brasil pelo professor cabo-verdiano Milton Monteiro para solicitar a criação da lei para a comemoração do centenário de Amílcar Cabral”

– É a primeira vez que a diáspora reage a um nível assim tão alto de contestação e também de propostas. Como interpreta este sinal ?

“Certamente ‘messiânico’ em termos de busca e valorização do próprio património cultural, histórico, daquilo que Aminata Forna chama de ‘Pedras dos Avós’. É um sinal dos tempos, certamente que precisa ser valorizado e abraçado a todos os níveis, sinal de crescimento, de maturidade histórica importante para pensar o futuro de qualquer povo no mundo certamente”.

Apresentação do autor:

Filomeno Lopes é filósofo, originário da Guiné-Bissau. É escritor e jornalista da Rádio Vaticano, e desde 1998 divide o seu tempo entre a sua atividade jornalística e o seu compromisso literário e artístico pela paz e desenvolvimento do seu país. Publicou vários livros, entre os quais: 

“Filosofia à volta do fogo”. O pensamento africano contemporâneo entre a memória e futuro (EMI, 2001); E se África desaparecesse do mapa-mundo?Uma reflexão filosófica (Armando Editore, 2009); 

Da mediocridade à excelência. Reflexões filosóficas de um imigrante africano (Edizioni Sui, 2015);

Para Castelvecchi já publicou “Não amo os racistas diletantes” (2020).

Fotos cedidos pela autora.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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