Zenaida Boaventura distinguida com Prémio Rotary Club em Palermo

A cabo-verdiana Zenaida Boaventura, residente em Palermo, foi distinguida com o prémio Rotary Club “pelo alto valor moral do empenho civil demonstrado em mais de vinte anos de atividades na fundação e gestão de “La Casa di tutte le Genti” (Casa para todos ou Casa de todos os povos)

Por: Maria de Lourdes Jesus

A Casa para todos  é uma associação de voluntariado fundada da um grupo de ativistas chefiada pela Zenaida Boaventura na cidade de Palermo. É o primeiro serviço de acolhimento de crianças concebido, criado e gerido por mulheres imigrantes afim de prestar assistência socioeducativa a crianças em idade pré-escolar de todas as nacionalidades presente nessa cidade, com o objetivo de apoiar as famílias com dificuldades económicas, promovendo a cultura de aceitação e de solidariedade.

Nasci em 1958 na cidade de Santa Maria, numa grande família constituída pela minha mãe, meu pai e 15 filhos. Minha mãe, Antónia Soares dos Anjos, teve 9 filhos e o meu pai Augusto Boaventura, trouxe mais seis para viver na nossa grande e bela casa de família.

A ilha era pobre mas estava em fase de desenvolvimento, atraindo muita gente das ilhas, sobretudo de S. Nicolau a trabalhar na extração do sal nas Salinas, para exportação, e também na fábrica de peixe que na altura era ativo. Meu pai tinha um bom trabalho: era funcionário do Estado e trabalhava como guarda fiscal na Alfândega do Porto de Santa Maria, onde aprodavam barcos com bandeiras estrangeiras e traziam uma grande variedade e quantidade de produtos alimentícios que ofereciam aos funcionários e sacos de milho e feijão à população. Até quando faltava água em casa a gente ìa tomar lá no barco. Assim na nossa casa havia sempre uma grande quantidade de vários produtos: presunto, queijo holandês, massa, arroz, feijão fazenda e até whisky. Cresci na fartura. Não nos faltava nada. Terminei o ciclo preparatório mas comecei logo a trabalhar no correio porque a escola superior era na cidade de espargo e o transporte custava muito e era muito longe.

– Por qual motivo decidiu emigrar para Itália?

Era o ano de 1976. Cabo Verde já era um país de recente independência, onde se respirava um clima de alegria, carregado de entusiasmo, festa em todo lado, felizes e orgulhosos da descoberta dessa nova identidade cabo-verdiana e africana que se aproximava. Estava mesmo excitada dessa onda gigante de liberdade a desafiar-nos a desafiar todas as instituições, inclusive a família que limitava e impedia de tomar parte e viver essa liberdade que já era nossa, já fazia parte da nossa nova identidade. Queria viajar, sair de casa, conhecer outros países. Queria ser livre de escolher. O nosso pai era muito rigoroso com as filhas, não nos deixava participar nos eventos públicos de festas. Mas o forte impulso a viajar era acompanhado da minha convicção de encontrar na emigração uma oportunidade para realizar o sonho que perseguia: estudar e fazer uma formação que me podia servir para quando voltar à minha Terra. 

Fui eu mesma a construir a bela imagem de Itália. Tinha todos os ingredientes necessários: as moças que vinham de férias, eram lindas, vestidas à moda, pel senton e muito dinheiro na carteira e com tanta história para contar. Não só, traziam novos géneros musicais, danças e uma nova forma de apresentar-se na vida social. Representavam uma imagem vitoriosa e de grande resgate social. Uma imagem tão atraente e de sucesso que ninguém resistia. Todas queriam emigrar para Itália e era muito fácil.

 Já era maior e pedi à minha irmã (que já vivia em Sicília) de me arranjar um trabalho e assim foi. Ela pagou-me o bilhete e viajei como turista sem nenhum problema. Estava tão feliz que nem sequer chorei na despedida dos meus familiares e amigos. Sentia-me como um turista que ia conhecer o mundo, não o clássico emigrante.

No início sim. Cheguei na cidade de Palermo (Sicília) em 1976 e fui viver em casa da minha irmã que só voltava para casa ao escurecer. Achava que trabalhava muito, mas eu estava feliz de ter chegado à Itália pronta para realizar o meu sonho, mas não sabia ainda como. Havia uma grande diferença entre eu e a minha irmã: não fui obrigada a emigrar e por isso não conhecia a saudade e o sofrimento do desapego da família. Em Cabo Verde não deixei filhos, ninguém para alimentar e os meus pais não dependiam do meu apoio económico para viver. Estava muito serena, mas muito curiosa com tudo o que se passava ao meu lado. Como se algo de extraordinário estava para acontecer. E eu à espera que acontecesse.

Foi, mas não como tinha sonhado. Não consegui renovar a autorização de estadia sem um contrato de trabalho. Graças à minha irmã fui trabalhar numa família de comerciantes: um casal com seis filhos ainda menores. Esse casal era muito gentil comigo. Pessoas muito simples e gostavam muito de mim. Tratavam-me com muito respeito. Além de cuidar das crianças, tinha que arrumar a casa, mas ninguém cozinhava nesta casa. Todas as refeições vinham do restaurante deles e era cmida sabe.

Infelizmente, depois de algum tempo, comecei a confrontar-me com as limitações e a dura vida do trabalho doméstico que não estava habituada. Nesse período, a minha única preocupação era o renovo da autorização de estadia subordinada a um contrato de trabalho que a senhora não decidia em assinar.  Havia também outro problema muito sério: o pagamento do meu salário começou a saltar e por fim já não me pagavam. Não sei porque mas acho que entraram em falência com o restaurante. Assim fui obrigada a mudar de trabalho.

O meu sonho era a minha sombra que temporariamente tive que deixar de lado para enfrentar os primeiros obstáculos que se apresentaram mas infelizmente não estava preparada. Sentia-me insatisfeita, dominada pela ansiedade, desânimo. Um estado de abatimento que não sabia como combater. Depois de algum tempo, comecei a sentir-me cada vez mais triste sem motivo. Passei por uma fase muito triste da minha vida: perdi a minha liberdade, aliás a minha liberdade ficou em Cabo Verde. Descobri o peso e o sofrimento da saudade da minha família, dos meus amigos e da minha vida na ilha do Sal. Vivia o mesmo estado de alma como todas as minhas patrícias que emigraram para Itália. Comecei a sofrer menos quando aceitei essa nova realidade na esperança de realizar no tempo o meu projeto.

A primeira coisa que fiz foi a de encontrar uma família, que me legalizasse e assim foi. Prometeram e cumpriram a palavra. Nessa altura era muito fácil encontrar emprego. A minha irmã fez saber à sua senhora que estava à procura e fui logo trabalhar numa nova família. A minha situação começou a melhorar, graças ao renovo da autorização de estadia que garantiu-me a segurança e permanência em Itália. Já não tinha receio de sair de casa, ou de ser expulsa. De uma certa forma comecei a ganhar confiança na minha pessoa e no que poderia fazer. A minha irmã teve um papel muito importante na aceitação dessa nova realidade de vida de emigrante. Dava-me muitos conselhos, e na quinta-feira e domingo convidava amigas a passar o tempo connosco em casa.

Nos dois dias livres: quinta e domingo, o nosso destino era ir sentar nos belos jardins do centro de Palermo e na grande Praça Politeama esperando que as outras patrícias, amigos chegassem, para a gente ir passear, fazer compras nas lojas, e ir ao correio enviar o dinheiro. Aos domingos comprávamos frango assado e íamos todas sentar no quarto, na casa da patroa o tempo todo até cada um voltar para casa por volta das 20.00. Nessa altura havia apenas 20 cabo-verdianas. Paulina (RIP) de S. Vicente. foi a primeira a chegar. No início era ela a nossa referência. A gente estava bastante animada porque todas as semanas chegavam algumas raparigas de Cabo Verde e juntavam-se a nós nos dias livres. Era uma grande alegria receber as novidades que os recém-chegados traziam: distribuía-se as encomendas e para quem não sabia ler, tinha sempre alguém a ler e escrever as cartas aos familiares. A certeza de poder contar e repetir esses momentos de encontro com as nossas patrícias era a nossa fonte de felicidade.

Aconteceu o seguinte: na década dos anos ’80, Paulina e Lucinda (as primeiras duas que chegaram em Sicília  em 1963, conheceram Api-Colf (sindicato che si interessa das trabalhadoras domésticas). Foi através delas que a comunidade cabo-verdiana começou a frequentar o Ancelle del Sacro Cuore, nos dois dias livres. Assim, para além das famílias onde a gente trabalhava, conhecemos outras pessoas italianas que frequentavam essa instituição. Era uma outra face da sociedade italiana.

Foi um dos primeiros passos rumo à nossa inserção nesta cidade. A partir daí começamos a frequentar assiduamente esse centro. Para além do curso da língua italiana havia também um curso de costura para quem estava interessado. A gente continuava com o nosso joguinho de carta e com o tempo começamos a fazer as nossas festas tradicionais como as de romarias, festa de 5 de Julho. Já não sofria como antes de saudade. O espaço foi ocupado pela dimensão e a exigência do meu sonho de ser realizado. Comecei a pensar como fazer o primeiro passo: comprava  jornal todos os dias à procura duma casa para habitar. Já não aguentava trabalhar e viver na casa das senhoras. Queria recuperar a minha liberdade e independência perdida. Queria ser eu a senhora da minha casa e da minha vida. Chegou o momento de agir. Encontrei uma linda casa no centro de Palermo. Era muito grande e cara para uma pessoa. Assim consegui convencer três amigas a dividi-la comigo.  Cada uma tinha o seu quarto. A sala de visita e de jantar era mesmo grande e com muita luz. Em comum a gente tinha: cozinha também grande, duas casas de banho e balcões nas janelas da sala na zona antiga de Palermo. Comecei a trabalhar como mulher a dias, me inscrevi numa escola italiana onde terminei os estudos e a seguir fiz um curso na área de psicologia infantil, que me habilitou a exercer a profissão de educadora infantil.

Em 1985, com o apoio de amigas e amigos de Palermo e de Roma, fundámos a Associação “Titina Silà”. No mesmo ano enviei um pedido à Comuna de Palermo e consegui obter uma sede, um espaço para a nossa comunidade. Foi a primeira resposta de autonomia e início de uma boa relação entre as  instituições palermitanas e a nossa comunidade que se apresentava com uma organização juridicamente reconhecida a representar e apoiar a nossa comunidade.

Mas só em 2003 conseguimos dar um salto de qualidade Profissional. Juntamente com um grupo de amigos e fundamos a associação “La Casa di tutte le Genti” para apoiar as famílias com dificuldades económicas, promovendo a cultura de hospitalidade e solidariedade nos bairros de Noce e Zisa, na sede concedida pela Comuna. A nossa foi a primeira associação palermitana, criada e gerida por mulheres imigrantes, numa lógica de entre ajuda, com o objetivo principal de promover a convivência, integração, comunicação entre mulheres de cultura diferente. É graças ao reconhecimento dos 20 anos do empenho social na Casa de todos os Povos que fui premiada pela Rotary Club de Palermo que apoio também as iniciativas nossa associação.

Casei-me em 1997 e o meu marido era viúvo e já tinha um filho com a primeira mulher, também cabo-verdiana. Por isso temos 3 filhos: o primeiro está empregado — ; a menina trabalha comigo comigo, no jardim de infância, o último é Stuart numa companhia privada na Inglaterra. A nossa relação é boa. Lidam muito bem connosco e entre eles no respeito recíproco. São valores raros hoje e mesmo por isso muito preciosos. Não só. Pela minha felicidade eles cultivaram um grande amor para Cabo Verde e gostam de ir passar ferias.

Eu e o meu marido somos reformados e temos intenção de ir viver no período de Inverno na nossa casa que compramos em Santa Maria. A nossa intenção é voltar ao menos duas vezes por ano a visitar os nossos familiares em Itália, se Deus quiser. Quanto ao jardim de infância, a minha filha e mais outras três jovens que trabalham comigo: Naldine da Graça de S. Nicolau, katisiana Vaz da Cruz de S. Vicente, Jura Oanca de Gambia  e Michaela da Romania, vão dar continuidade à Casa di tutte le Genti, que conta também com o apoio de estagiários e jovens do voluntariado.

Vou-te dizer uma coisa: eu e o meu marido tentamos investir em Cabo Verde, no ano 2000 (quando ainda éramos bastante jovem), mas o projeto não avançou por vários problemas que surgiram e decidimos voltar para Itália. Desistimos do projeto porque é mesmo difícil realizar projetos na nossa ilha, sobretudo para nós que vivemos na diáspora. A relação connosco é muitas vezes, frustrante, humilhante e desanimador, ma lá é ke nos Terra.

Sair da versão mobile