A comunidade cabo-verdiana em Itália tem história para contar, sobretudo a primeira geração filha dos anos 40/50. Uma geração com os pés bem fincados no chão, determinada a lutar com todos os meios para abater a pobreza que reinava na maioria das famílias em Cabo Verde. A salvação de muitas delas, foi entregue, desta vez, na emigração feminina para Itália. A primeira a quebrar o tabu duma emigração exclusivamente masculina. Segue um extrato da nossa conversa sobre a sua vida em Itália e a sua reintegração em Cabo Verde, no dia 30 de Julho 2024 no Odjo d’Agua.
Por: Maria de Lourdes Jesus
Vida em Milão
Em 1977 fui trabalhar em Milão. Uma grande cidade industrial, rica e capital da moda. Gostei imenso. Milão conquistou-me logo à primeira. Já lá estavam um bom grupo de cabo-verdianas e havia muitos lugares onde passar o tempo livre e divertir. Em Milão, entrei pela primeira vez numa discoteca com cerca de dez amigas. Ali conheci mais patrícias e fizemos amizade também com os italianos.
Trabalhava numa família que me deu a possibilidade de seguir o curso de 150H (organizado pelo Sindicato) para obter o diploma da escola média em italiano. A escola era noturna, ia sempre depois do jantar. Levei comigo algumas amigas e encontramos outras cabo-verdianas e italianos que estavam, aproveitando dessa oportunidade. Graças aos 150H passei a ler livros em italiano e a escrever. Milão ofereceu-me várias oportunidades que soube colher logo no momento: bom trabalho, boa família, instrução, amor, segurança, e bom salário.
No mesmo ano que cheguei conheci o meu futuro esposo. Decidimos casar com intenção de formar a nossa família. No dia 2 de Agosto fomos celebrar o nosso casamento na Comuna de Milão e, no dia 20 do mesmo mês, obtive a cidadania italiana. Naquele tempo era assim. Infelizmente o meu casamento não durou muito. Depois de três meses casada pedi o divórcio. Não queria ser escrava de nenhum homem. Queria ser tratada come uma princesa, não pelo dinheiro, mas pelo tratamento afetivo. Queria ser acarinhada e amada. Nada disso aconteceu, mas é escusado entrar no assunto.
Milão foi a cidade onde vivi e gozei da minha juventude. Tinha um bom trabalho e uma boa relação com os senhores onde trabalhava. Deram-me a chave da casa, assim nos dois dias livres podia voltar quando me apetecesse. Frequentava um grupo de mais ou menos de 10 amigas que gostavam das festas. Assim, no domingo a gente ia à tardinha a dançar até às 20h00. Depois da discoteca íamos jantar pizza. Quem tinha as chaves ia novamente dançar, quem não tinha voltava para casa, logo.
Cidadania italiana e vantagens
Relativamente à cidadania italiana tenho muita coisa a dizer. A cidadania libertou-me completamente. Saí finalmente da prisão que o trabalho doméstico representava. Já não precisava pedir a ninguém de renovar o contrato de trabalho para obter a autorização de estadia em Itália, quando vinha de ferias não deveria ir à polícia com a carta do meu patrão para pedir o visto de retorno em Itália.
Já podia arrendar uma casa sem pedir a nenhum cidadão italiano que garantisse para mim, no momento de assinar o contrato e podia trabalhar como mulher a dias como uma italiana qualquer. E se tivesse uma formação podia trabalhar em qualquer outro lugar onde só com a cidadania era possível. Só podíamos exercer o trabalho doméstico naquele tempo.
Já não dependia mais de ninguém, só do meu trabalho e da minha saúde. Já não estava submetida à chantagem de nenhuma senhora. A cidadania foi a grande prenda do meu casamento. Única coisa boa que obtive do meu casamento. As vantagens são realmente imensas. Basta pensar que hoje não preciso de visto para viajar em qualquer país da Europa e também dos Estados Unidos. Sofro ao ver os meus patrícios em Cabo Verde a sofrer a humilhação de ter que fazer prova da quantia do seu dinheiro no banco, de ter de pagar o custo do visto, mesmo se for rejeitado, e ficar horas na fila para entregar toda a documentação que não serve de nada. Sem pensar nos custos das viagens e estadia no Mindelo ou na Praia. É um coisa vergonhosa, mas ninguém faz nada. É mesmo triste.
Roma, a última cidade onde viveu até 2005
Sim, em Roma estava uma parte importante da minha família e muitas amigas. Trabalhei em casa de famílias muito conhecidas, com as quais ainda mantenho excelente relações e contacto permanente. Quando cheguei em Roma já me sentia uma mulher adulta. A minha juventude encontrou lugar para viver e divertir em Milão, mas sempre no respeito das regras e dos valores da educação que recebi dos meus pais. Nessa cidade vivi mesmo. Amei e senti-me amada como mulher. Era bonita e sempre bem vestida quando saia de casa. Sempre fui atrevida, mulher de festa e cheia de partidas para contar.
Divertíamos muito. Milão para mim foi uma explosão de juventude, que não aconteceu em nenhuma outra cidade. Já em Roma persegui uma vida de mulher madura, serena e estabilizada. Iniciei uma nova etapa. Nos dias livres, passava a maioria do tempo no Movimento Tra-Noi. Passei a fazer parte de um grupo de oração chamado “Rainha dos corações”. Adorava ir aos passeios que organizavam, privilegiando as festas da nossa comunidade e as tardes nas casas de familiares e amigos, inclusivo “Fundo Mare Palinha”, primeiro aglomerado da nossa comunidade, onde tinha muitas amigas.
Em Roma arrendei uma casa e comecei a trabalhar como mulher a dias. Era finalmente dona da minha casa e da minha vida. Já podia finalmente convidar familiares e amigos a visitar-me. É uma sensação de liberdade total. Sentia-me mesmo um cidadão bem inserido na sociedade italiana. Mas a minha identidade foi e sara sempre cabo-verdiana. Sempre me identifiquei como cabo-verdiana.