Gisela Santos, cabo-verdiana que assume agora o nome Habibato, rosto esbelto, pele morena, cabelos longos e uma simpatia que diz ter herdado da sua terra natal, é uma jovem mãe de duas meninas e três rapazes. Convertida ao islamismo e residente no Senegal, assume que a diferença cultural e religiosa acabaram fortalecendo a sua personalidade e enriquecendo a sua sabedoria.
Por: Maria Fonseca*
A sociedade cabo-verdiana sempre foi marcada pela emigração. Primeiramente devido a condições socio-económicas, depois pelo espírito aventureiro do povo. Se antes o destino era quase e exclusivo a Europa e a América, atualmente os emigrantes vão para todas as partes do mundo.
Hoje vamos viajar até Senegal. A cerca de 100km do centro de Dakar, encontramos, no distrito de Rufisque, uma localidade de nome Diamniadio, que ainda tem poucas habitações e muitas delas são de emigrantes. Algumas estão em construção e outras permanecem fechadas por muito tempo, isso porque os proprietários as usam apenas quando estão de férias. Entretanto, o número de pessoas que aqui reside tem aumentado.
Dentro de Diamniadio encontramos uma família de origem cabo-verdiana e guineense. Mamadu Djaló e Gisela Santos chegaram aqui há pouco tempo, anteriormente moravam em outra localidade. É uma área em processo de desenvolvimento. Há projetos para esta zona onde foi construído o novo aeroporto internacional do país.
Gisela, cabo-verdiana, rosto esbelto, pele morena, cabelos longos e uma simpatia que diz ter herdado da sua terra natal, é uma jovem mãe de duas meninas e três rapazes. Há quase cinco anos que viajou para o Senegal, com intuito de passar três meses de férias. Infelizmente, veio a Covid-19, fronteiras fechadas, quarentena, pânico nas pessoas… Sem saber o que fazer no momento, não viu outra alternativa a não ser permanecer por mais tempo naquele país estrangeiro.
Entretanto, com o espírito de negócio que lhe é característico, ela e o marido decidiram abrir um estabelecimento comercial que, logo no início, teve uma boa aceitação por parte da população. Assim se foram familiarizando, engajando na nova sociedade. Com a venda a prosperar, decidiram ficar, sendo que, até hoje, apenas o marido voltou a Cabo Verde para visitar os negócios que aqui deixaram.
Do cristianismo ao islamismo
Licenciada em pedagogia, mais concretamente na área de Educação Infantil, Gisela exerceu a função de educadora infantil durante cinco anos em São Vicente. Após a licenciatura e defesa de monografia submeteu o seu currículo ao ICCA (Instituto Cabo-Verdiano da Criança e do Adolescente), onde trabalhou como técnica com as crianças de e na rua e depois como coordenadora do projeto Eliminação e prevenção do trabalho infantil dos países da África Ocidental – PEPTIAO, durante três anos, na ilha de Santiago. Isso, antes de se casar com o atual marido e de se converter ao islamismo.
Desde criança segue com muito rigor as crenças religiosas. De católica, que participava de quase tudo o que se praticava nas igrejas (membro do coro e catequista), para muçulmana. Mudanças radicais que acabaram fortalecendo ainda mais a sua personalidade e enriquecendo a sua sabedoria. Aventureira, amante de desafios, com muito foco e determinação, hoje sente-se bastante satisfeita com tudo o que a vida lhe proporcionou até ao momento.
O tempo foi passando no Senegal, com os filhos a irem à escola e a vida a acontecer normalmente. Contudo, no início, ainda numa fase de adaptação e reintegração social, alguns desafios também foram surgindo. Isso totalmente natural, devido as mudanças. Um dos maiores obstáculos foi a aprendizagem da língua materna da esmagadora maioria da população. Quem domina o Uolofe acaba sempre por fazer uma mescla dele com o francês, que é a língua oficial do país. Isso cria dificuldades na compreensão e interação dos não nativos e recém-chegados.
No tocante à religião, a islâmica possui uma forte dominância, não só na zona onde reside como no país inteiro. Quase que não se encontram pessoas de outras religiões. Isto é perceptível em alguns momentos do dia, quando a maioria suspende seus afazeres, apanha a “água de reza” e inicia a sua oração. Este ato é repetido cinco vezes ao dia, com os homens de um lado e as mulheres do outro. Todas as sextas-feiras, deslocam-se para a mesquita local e, por uma hora, fazem suas preces a Allah.
Mesmo convertida e casada ainda em Cabo Verde, Gisela acha que a realidade, no Senegal, é bem diferente. As exigências são mais firmes e as regras são mais lineares, talvez por ser uma religião ainda jovem no seu país de origem, ou porque, em São Vicente, continuava a ter contato com tudo o que lhe era familiar. Por isso, logo após a conversão, o seu modo de vida quase não se alterou.
No que tange a socialização, em Cabo Verde, é normal encontrar quaisquer familiares, amigos ou conhecidos e cumprimentá-los com beijos, abraços e apertos de mão, mas nem tanto no Senegal.
Tem aquelas pessoas, os hibados [ribadus], que vivem cegamente o Alcorão e não se pode chegar a eles, falar de forma “aberta”, mostrar simpatia desnecessária ou pedir um aperto de mão. Se forem dois casais, as mulheres não podem cumprimentar os homens. Se for um grupo ou uma comunidade, num convívio, as mulheres ficam de um lado e os homens do outro. Não pode haver mistura de género. As crianças também não podem juntar-se, tem que ter meninas de um lado e rapazes do outro, mesmo nas brincadeiras. No entanto, a nossa jovem já conseguiu superar a maior parte destas normas sociais.
Uma outra norma desta religião é a aprovação da poligamia. O homem pode ter até quatro mulheres, desde que tenha condições económicas e sociais para tal. Não pode deixar faltar nada a nenhuma delas e deverá tratá-las de igual modo. Entretanto, para quem não quer ou não tenha possibilidade não é obrigado a esta práxis.
Por não ser algo obrigatório, o casal optou por não ter mais mulheres. “Nós não aceitamos isso. Vivemos de acordo com os nossos princípios. Graças a Deus nunca fomos desrespeitados, muito pelo contrário. Sempre tivemos muito apoio da sociedade, aonde quer que vamos, somos sempre bem recebidos”, realça a jovem.
Quase cinco anos fora da sua terra
Habibato, [Rabibato], como é chamada na sociedade islâmica, que significa alguém muito querida, hoje já consegue se comunicar, sem a ajuda do marido, e interagir com os outros, principalmente com os grupos femininos. Aquilo que não consegue dizer em uolofe tenta explicar no francês que aprendeu ainda adolescente na escola secundária Jorge Barbosa, em Cabo Verde.
Entre as várias convenções que encontrou nesta nova vida, está o fato de ser o marido a permitir uma vida profissional autónoma à mulher. Entretanto, o casal decidiu trabalhar em conjunto, abrindo uma loja no primeiro piso da casa. Também na garagem tem uma boutique, que pertence apenas a Habibato com uma clientela bastante vasta e diversificada. Habibato orgulha-se de conseguir gerir os negócios, acompanhar os filhos e cuidar da casa.
Os pratos típicos
Ex-colónia francesa, o Senegal possui uma culinária bastante rica, originária da África Ocidental. Além disso, a cozinha contém vestígios do Norte de África, de Portugal e do colonizador. Entre as variedades, destaca três tipos: o thiéboudiène [txepdjene], o mais confecionado que é à base de peixe, legumes, tamarindo e arroz; chebu yapp, bem parecido com o anterior, só que este é à base de carne de bovino ou carneiro; o frango yassa, que, para além de muito picante, contém também muita cebola e legumes.
Para a família, acostumar-se a estes pratos foi outro desafio. Ela relembra: “No começo não foi nada fácil, não nos conseguíamos alimentar como queríamos porque a comida aqui é muito picante, eles adoram a pimenta preta e tudo o que cozinham tem malagueta, bastante óleo, cebola e alho. Eu adoro chebu yapp, porém não conseguia comê-lo como eles preparavam o prato.”
Depois de algum tempo, foram-se habituando, ou melhor, ajustando. Habibato já sabe preparar muitos dos pratos, mas à sua maneira. “Sei que não sou uma profissional na cozinha, mas faço do meu jeito e do modo que eu e a minha família já conseguimos comer. Não uso pimenta nem óleo. Uso o azeite e não em grande quantidade. Ou seja, cozinho da forma que sinto que é mais saudável, não prejudicando a nossa saúde. Se tiver convidados, coloco malagueta e outros condimentos à parte”.
No horário das refeições, os costumes são bem particulares. A refeição é colocada em uma travessa grande, todos sentados no tapete em forma de círculo, não são necessários pratos nem talheres. Mas isso também não é simples, para quem não está acostumado. Tem que comer só com a mão direita e a comida não pode tocar a palma da mão.
A saudade
Ao falar da sua terra, Habibato não hesita nas emoções, com um sorriso nos lábios e os olhos a transbordar, ela abre o coração e fala: “Não há palavras que descrevam o quanto sinto saudades da minha terra. Sem dúvidas que penso em lá voltar. O que nos impede neste momento é que o meu marido tem outros filhos aqui e não queremos que eles cresçam longe do pai. Conseguimos dar mesmo valor à nossa terra, à nossa cultura, música, dança, quando saímos, quando vivemos fora.”
Para ela, ouvir alguém a falar crioulo é muito prazeroso. Por isso gosta imenso quando vai tratar de algo na embaixada e ouve pessoas a falarem a sua língua materna. “Fico radiante! Não há como explicar a sensação! O nosso gingado é mesmo diferente. Sinto falta de sair à rua e perguntar em voz alta– ‘bom dia, bo durmi dret’?”
Mesmo longe da sua terra, ela sabe que são as experiências que fortalecem a sabedoria. As lutas e as dificuldades são bases para construir bagagens para um futuro gratificante.
* Estudante do 3º ano da Uni-CV (polo do Mindelo), na Licenciatura em Línguas e Culturas – Estudos Cabo-Verdianos e Portugueses