A condenação a 5,6 anos de prisão aplicada a Marley Matos por homicídio negligente grosseiro parece ter acordado os motociclistas mindelenses para a realidade. Tocados com a situação do colega – que atingiu um idoso quando circulava com a roda dianteira suspensa em Monte Sossego – cerca de 50 motoqueiros, ciclistas e amantes de outros desportos radicais reuniram-se no pátio da Gare Marítima para discutir o caso, analisar os seus próprios comportamentos nas estradas, ver o que fazer para se organizarem e ao mesmo tempo combaterem a imagem negativa que, reconhecem, criaram na sociedade mindelense.
Segundo Ricardo Fidalga, mentor do encontro, após algum debate, durante o qual vários motoqueiros admitiram que andam a colocar a vida de transeuntes em risco e a perturbar o sossego de pessoas à noite, decidiram criar uma associação e passar a colaborar com a Polícia Nacional e a Câmara de S. Vicente, participando em campanhas de prevenção rodoviária e promovendo limpeza de vias públicas.
“Alguns colegas dizem que fazem manobras na cidade porque a Câmara não nos disponibiliza um espaço, mas ficou claro que isso é uma desculpa sem nexo e que não é obrigação da Câmara oferecer-nos uma pista. A Câmara pode colaborar, mas a iniciativa deve partir do grupo. E, uma vez organizados, teremos mais condições para atingir essa finalidade”, revela Ricardo Fidalga.
Caso seja criada, a associação irá abranger praticantes dos variados desportos radicais de roda, como bicicleta, patins, skate, schooter e outras motorizadas. Um dos principais objectivos será a identificação de um espaço longe da cidade onde poderão construir pistas e treinar sem perturbar transeuntes. Como realça Fidalda, que falou com o Mindelinsite acompanhado do colega Djiblinha, S. Vicente pode dar cartas nos desportos motorizados, porque há atletas que sabem dominar os veículos e fazer manobras espectaculares. Aliás, tem a plena consciência de que os mindelenses apreciam essa modalidade, como já deram mostras num espectáculo realizado na ex-Torrada e na primeira edição do Downhill Monte Cara em bicicleta, eventos que reuniram centenas de torcedores. Ao mesmo tempo lembra que esses mesmos apoiantes condenam os motoqueiros e ciclistas quando usam a cidade como pista de corrida e de manobras perigosas.
Por incrível que pareça, há motoqueiros que se sentem perturbados com o comportamento dos próprios colegas. É o caso de Daniel “Djiblinha” Mascarenhas, que fica irritado quando é acordado a altas horas da noite com o ronco dos motores na Rua de Lisboa. “Isso é realmente incomodativo e já disse aos meus amigos que um dia desses chamo a Polícia”, conta Djiblinha, um dos mais conhecidos motociclistas da cidade do Mindelo. Porém, adverte, procura sempre fazer as suas acrobacias fora dos limites da cidade para não provocar acidentes.
“Tenho uma oficina e incomoda-me quando os meus amigos chegam lá com as rodas no ar”, reconhece, por sua vez, Ricardo Fidalga. Ele que se mostra disposto a lutar para o nascimento da associação, convencido de que esse organismo irá ajudar a orientar o comportamento dos seus membros e ser ao mesmo tempo a porta-voz dos desportos radicais em S. Vicente.
“Há uma consciência no seio do grupo de que as coisas não podem continuar como estão. Somos mal vistos pela sociedade e perseguidos pela Polícia. Vamos tentar amenizar esses casos, mas estamos cientes de que haverá sempre um ou outro motociclista que irá continuar a levantar a roda de forma irresponsável”, diz Fidalga. Para ele, essa associação poderia funcionar como um elemento de sensibilização e até denunciar os prevaricadores. Uma das regras que, a seu ver, terá de ser aplicada com o máximo rigor é a proibição de condução sem carta.
Fugir da polícia
Os motoqueiros, garante Fidalga, têm receio da polícia, apesar de pairar no ar a ideia de que a PN nada faz para coloca-los na linha. Como conta, ele próprio já foi multado em dez e trinta contos por levantar a roda e conduzir sob efeito do álcool. Fidalga garante que a PN tem tentado combater o problema, mas reconhece que é uma missão difícil.
“A polícia não vai encetar uma perseguição desenfreada aos motoqueiros porque sabe que isso irá aumentar os riscos de acidente. Mas, os agentes sabem quem somos e muitas vezes já surpreenderam o pessoal quando menos estavam à espera”, conta Fidalga. Na sua opinião, chegou a altura de os motociclistas passarem a colaborar com as autoridades, nomeadamente a polícia. E, a seu ver, não precisam esperar pela associação porque o processo vai demorar o seu tempo.
Por isso, ele e Djiblinha pretendem já na próxima semana falar com a Câmara de S. Vicente, explicar as suas intenções e identificar zonas onde podem promover campanhas de limpeza. Em paralelo vão abordar o Comando da Polícia Nacional e ver como podem também trabalhar em conjunto, a bem da segurança rodoviária.
Pelas estimativas de Ricardo Fidalga, a associação poderá envolver uns 400 membros, elementos esses que deverão agir com base num código de conduta. A partir dali acredita que será possível obter a ajuda da Câmara, da PN e da própria sociedade civil mindelense na edificação dos seus projectos.
Apesar dos tantos acidentes mortais envolvendo motoqueiros em S. Vicente, a sentença aplicada a Marley Matos parece ter surtido um efeito maior no seio do grupo. Segundo Fidalga, há algum tempo que o pessoal tem estado com vontade de impulsionar uma mudança de comportamento. A situação de Marley, reconhece, foi esse clic que estavam à espera. Amigo de infância do jovem condenado, Fidalga diz que Marley tem a consciência do mal causado e que não tem conseguido dormir desde o dia do acidente. Para ele, esse caso tem de servir de exemplo para todos.
Kim-Zé Brito