Cheiro a “peixe podre” na Av. Marginal: Mindelenses irritados com falta de solução, CMSV em silêncio, Atunlo lava as mãos

Os mindelenses estão irritados com o cheiro a “peixe podre” que continua a invadir a Avenida Marginal, proveniente alegadamente da unidade industrial Atunlo. Já queixaram, apelaram, desesperaram e “gritaram”, utilizando a imprensa e as redes sociais, sem solução. Esta situação, que se arrasta há mais de três anos, é considerada insuportável pelas pessoas que transitam pela avenida e que são obrigadas a suster a respiração, mas principalmente por aqueles que trabalham ao longo da orla. Hoje, para minimizar os incómodos físicos e psicológicos – dores de cabeça, mal-estar e desmaios -, há pessoas que recorrem a máscaras. A Atunlo lava as mãos e a Câmara Municipal mantem-se em silêncio. A Delegacia de Saúde de S. Vicente, “envergonhada”, responsabiliza a Enapor e também o Governo. Para Elisio Silva, “alguns postos de trabalho” não podem perigar toda a ilha. Na mesma linha, o cidadão César da Cruz alerta para o risco desta situação inviabilizar os investimentos que estão a ser feitos na Avenida. “Mesmo nós, para não falar dos turistas, não queremos aquele cheiro. Aquilo é fétido”, desabafa. 

O fedor na Avenida Marginal, que circunda a Baía do Porto Grande, classificada como uma das mais belas enseadas do mundo, já começa a irritar os mindelenses. A situação arrasta-se há mais de três anos, pelo que os cidadãos residentes em S. Vicente já se mostram cansados e indignados com a falta de solução desse problema, que tem estado a envergonhar a cidade e a colocar em risco a qualidade do turismo. Mesmo assim insistem em reclamar nas redes sociais e através da imprensa, na expectativa de que, algum dia, possam passear ao longo da Avenida Marginal sem suster a respiração ou tapar o nariz.

Porém, os mais afectados são os profissionais que trabalham diariamente na orla marítima. Caso, por exemplo, dos estivadores e carregadores do Porto Grande e do cais de cabotagem, os funcionários da Enapor e da Alfândega, Polícias Marítima e Fiscal, Guarda Costeira e agentes de segurança privada que são obrigados a respirar durante o dia o ar pútrido exalado por essas bandas. “Estamos lá, diariamente, durante muitas horas. Sofremos muito com o cheiro porque estamos muito perto da fábrica de pescado Atunlo. A situação é tão grave que, nos últimos tempos, resolvemos comprar boquilhas e/ou máscaras de protecção para evitar o mau cheiro e as implicações, nomeadamente dores de cabeça e de garganta e tonturas”, relata um agente da Silmac. 

Essa situação constitui mais uma despesa para esta classe profissional, que já se queixa de salários muito baixos, e que está agora obrigada a suportar o cheiro para fazer o seu trabalho. De acordo com a mesma fonte, cada um compra o seu equipamento, mediante as suas possibilidades. “Alguns compram máscaras mais leves e baratas, outros as mais pesadas. Cada um se protege como pode, inclusive alguns agentes da Polícia Marítima nos informaram que mandaram recomendar mascaras mais fortes no exterior. Certo é que estas máscaras já fazem parte dos nossos uniformes”, realça a mesma fonte, que admite não terem apresentado, formalmente, nenhuma queixa na Enapor. Assegura, no entanto, que já disseram à chefia da Silmac que essa situação é insuportável. “Estamos à espera de medidas.”

Este crê, no entanto, que seria redundante apresentar qualquer reclamação junto da empresa que gere os portos de Cabo Verde tendo em conta que todos os funcionários da Enapor, incluindo as chefias, estão a par da situação. Aliás, diz, sempre que os trabalhadores da Enapor cruzam o porto em direcção ao terminal de contentores, às oficinas ou à sede da empresa são obrigados a conter a respiração ou a tapar a boca e o nariz com as mãos. “O problema é que, depois, seguem o seu caminho como se não se passasse nada.”

Este “silêncio ensurdecedor” está a provocar revolta no seio destes profissionais, que equacionam manifestar o seu descontentamento à porta da Enapor.“Eu mesmo chequei a propor aos colegas das policias Marítima e Civil, Guarda Costeira e demais trabalhadores de todas as empresas de segurança privada para fazermos uma manifestação, mas ainda estamos a organizar. Se as pessoas que atravessam esta Avenida reclamam, imagina nós que estamos aqui, durante largas horas, a poucos passos da Atunlo”, desabafa uma outra fonte ouvida pelo Mindelinsite.

Transeuntes esgotados 

Também as pessoas que ocasionalmente passam pela Avenida Marginal ou que trabalham nas proximidades do Porto Grande mostram-se esgotadas com esta situação. É o caso, por exemplo, de César da Cruz, que realça o facto dos muitos investimentos em hotéis que estão a ser feitos nesta avenida – neste momento estão em fase de construção os hotéis Oril, Cruzeiros, Maria do Carmo, Golden Tulip e Sheraton – possam ser inviabilizados por este cheiro. “Tenho comentado sobre isso em jornais e no Facebook. A pagina do Provedor do Mindelo já abordou este assunto. O próprio Mindelinsite fez reportagens denunciando esta situação, mas continua sem solução. Só não sei se, à noite, os hóspedes vão conseguir dormir nas camas desses hotéis ao longo da marginal devido a esse cheiro e com a barulheira das motas, que andam a substituir os escapes originais por outros expressamente concebidos para fazer barulho. Isso se conseguirem permanecer nos hotéis durante o dia com este cheiro ‘ fedi” desta avenida”, desabafa este mindelense, que deixa claro que não está a agoirar estes investimentos.

“Mesmo nós, sem turista, não queremos este cheiro. Aquilo é fétido”, acrescenta, destacando outros cheiros que também circundam a cidade do Mindelo: esgoto pelos os lados do Caizin e Praça Estrela, chiqueiro na estrada que a CMSV está a construir,em direcção ao miradouro do Monte Gude… “Não sei como os trabalhadores estão a conseguir trabalhar naquele sítio”, pontua. 

Rocca Vera-Cruz, que angariou muito seguidores por causa das suas crónicas que pintam a cidade do Mindelo tal e qual ela é, assume-se também como um critico do mau cheiro que invadiu e fixou “residência” na Avenida Marginal. No entanto, passado o fulgor inicial, este admite que neste momento não tem muito a dizer. “Neste momento não tenho muito a dizer…nós todos sabemos da situação, um cheiro horrível, horrível. Incomoda todos os que passam na Avenida. Desde de Dezembro do ano passado que agravou. O cheiro é mais intenso entre o cais e o restaurante Dokas”, assinala. 

Também o Provedor do Mindelo, na sua última publicação sobre o assunto, questiona: “até quando vamos ter de conviver com o cheiro ‘ maf’ na Av. Marginal, que se prepara para receber três grandes hotéis?! Nós que aqui vivemos e os turistas que nos visitam não merecemos conviver com este cheiro. Pedimos ao Governo e à Câmara de S. Vicente que ponham cobro a esta situação o mais rápido possível, se queremos ter uma ilha atrativa para turismo.”

CMSV em silêncio, Delegacia de Saúde envergonhada

Apesar das críticas, queixas e reclamações, a Câmara Municipal absteve-se de prestar quaisquer informações ao Mindelinsite sobre este assunto. Já a Delegacia de Saúde admite que vem acompanhando a situação e que já interviu por diversas vezes. Porém, enfatiza o Delegado de Saúde, o mau cheiro continua. “A fonte do mau cheiro é uma Estação de Tratamento de Águas Residuais a descoberto da fábrica Atunlo. Esta é uma situação que nos envergonha porque toda a ilha está a sofrer. Quanto chegam os barcos turistas ao Porto Grande os turistas são obrigados a atravessar este cheiro”, lamenta Elisio Silva, que reconhece ainda dificuldades acrescidas para a Policia Marítima e Fiscal, agentes de segurança privada, Guarda Costeira e outros, e ainda dos trabalhadores da Enapor e da Alfândega do Mindelo.

O Delegado de Saúde de S. Vicente responsabiliza a Enapor por esta situação, por esta empresa ter permitido a construção de uma unidade industrial dentro do Porto Grande e por abster-se de tomar medidas para acabar com essa situação. “O mais triste é que a empresa tem conhecimento da situação e nada faz”, salienta. Para Elisio Silva, uma solução definitiva, nesta altura seria a deslocalização da fábrica de processamento e conserva de pescado e mariscos. “Já tentamos de todas as formas resolver este problema, sem sucesso. Há mais de três anos que a situação se arrasta, mas é difícil tomar uma decisão drástica, que seria o encerramento da unidade porque esta emprega mais de 300 pessoas. Nesta fase, entendo que qualquer medida mais dura terá de vir de cima, isto é, do Governo”, enfatiza. 

Até lá, de acordo com o responsável pela Saúde publica na cidade do Mindelo, sempre que o cheiro se intensificar vai telefonar para a empresa e continuar a exigir que coloquem um produto na ETAR para reduzir o cheiro. “Ao que tudo indica, trata-se de um produto caro, pelo que só é utilizado quando o cheiro fica muito forte”, revela Elísio Silva, que é também vitima directa do mau cheiro por morar no complexo Copa Cabana e fazer caminhadas com frequência na Av. Marginal. “Quando o cheiro aumenta de intensidade entra pelas janelas dos apartamentos e sentimo-nos sufocados. Se eu tivesse poder já tinha resolvido este problema”, garante Silva, lembrando que este problema transitou do Governo anterior e que já nessa altura enviou cartas às autoridades apelando a uma decisão governamental. 

Este lembra a luta titânica que a Delegacia de Saúde desenvolveu ao longo de vários anos para resolver um problema similar na fábrica de pescado Frescomar. Neste caso em particular, indica, as partes uniram-se e encontraram uma solução satisfatória. Hoje o mau cheiro praticamente desapareceu daquela zona. Por isso mesmo, Elisio Silva diz não entender porque não se resolve o problema da Atunlo. “Neste momento a ilha de S. Vicente está cercada de mau cheiro. Para além da Avenida Marginal, temos mau cheiro no Caizin provocado por esgotos, sendo que neste caso a responsabilidade é da CMSV que permitiu a ligação de esgotos industriais na rede domiciliária. Com isso, basta cinco minutos de chuva para estes começarem a estourar. O impacto, neste caso, é sentido até nas zonas altas, caso por exemplo da Ribeirinha. Temos outros cheiros nauseabundos em algumas localidades por causa dos chiqueiros. Todas estas situações demandam uma resposta urgentes das autoridades”, assevera. 

Atunlo lava as mãos

Confrontada por Mindelinsite, a Atunlo reagiu descartando quaisquer responsabilidades na matéria. A empresa afirma que o mau cheiro que se sente com mais intensidade nos últimos dias, não se deve à sua actividade no cais internacional do Porto Grande. Alega que a empresa labora de forma contínua quase todo o ano e que o cheio só se sente de vez em quando. O que leva a empresa a concluir que, se o mau cheiro devesse à sua actividade, naturalmente que este cheiro seria sentido durante todo o ano. “Da análise que já fizemos, o mau cheiro deve-se, em exclusivo, à avaria na estação de bombagem sita no Dokas Bar, estação essa pertencente à Câmara Municipal”, informa a Atunlo. 

Para justificar a sua “inocência” neste processo, a fábrica informa ainda que, sempre que há uma avaria nesta estação verifica-se um retorno da água de esgoto doméstico das zonas altas – Chã de Alecrim, Lajinha e Copacabana -, que entra na Atunlo CV, Moave e Enapor, empresas cujas instalações estão situadas na zona mais baixa da cidade, ao longo do trajecto de esgoto.  “Estas avarias, que nada têm a ver com a Atunlo, também têm repercussões negativas no desenrolar da nossa actividade que, em 2018, em virtude desse problema, teve sucessivas paragens na produção.”

Questionada da razão de não se conseguir resolver este problema, a empresa volta a repetir que isso não é responsabilidade da Atunlo. Aliás, faz questão de realçar que esta é uma competência das autoridades responsáveis pela estação de bombagem. Entretanto, face às sucessivas avarias nessa estação da Avenida Marginal, a empresa constituiu internamente uma equipa formada por técnicos de controlo de qualidade e de manutenção para monitorizar o funcionamento da mesma de forma contínua. 

“A ETAR da empresa faz um tratamento prévio das águas residuais resultantes da actividade industrial, separando todas as substâncias sólidas como gradados/tamisados, areias e lamas, os quais são devidamente tratadas e encaminhadas para destino final apropriado – Lixeira da CMSV – e a água tratada é direccionada para a rede de esgoto municipal”, responde. 

A empresa esclarece ainda que a Atunlo tem um departamento de controlo de qualidade que diariamente faz medições das águas residuais, conforme determinado pelas disposições legais vigentes, sendo analisados os parâmetros de pH, a temperatura, oxigénio dissolvido, turgidez e odor. Todas estas medidas, diz, são enviadas mensalmente, através de relatórios, à Enapor, à Agência Nacional de Água e Saneamento, Direcção Nacional do Ambiente e à Câmara Municipal de S. Vicente. 

Tudo isso para mostrar que a Atunlo não tem qualquer responsabilidade sobre o mau cheiro na Avenida Marginal, sendo aliás também ela uma das vitimas. “Até 2018, sempre que ocorria uma avaria na estação de bombagem no Dokas, verificava-se um retorno de esgotos dentro das instalações da empresa, que teve várias paragens de produção devido a este problema. Para tentar ultrapassar esta situação, em 2018, a Atunlo colocou uma bomba anti-retorno, evitando assim a entrada de esgoto, quando há avaria na estação de bombagem da CMSV. Mas esta bomba não é suficiente para resolver o problema de forma permanente, já que não pode ser mantida fechada, o que significa que, por vezes, o esgoto entra nas nossas instalações”, relata. 

Instado sobre uma possível intervenção das autoridades, inclusive tendo em conta as ameaças feitas pela CMSV e pela Delegacia de Saúde sobre o possível encerramento e/ou deslocalização da unidade, a Atunlo mostra-se tranquila e esclarece que é tão-somente concessionária da Plataforma de Frio, infraestrutura que pertence ao Estado de Cabo Verde, pelo que não pode se pronunciar sobre questões como a sua deslocalização. A empresa finaliza dizendo que as autoridades têm conhecimento dos problemas que afligem a rede de esgoto e não cabe a Atunlo decidir o que quer que seja. 

Aborda igualmente sobre este polémico caso, a Enapor, através da sua assessoria de comunicação, direccionou o Mindelinsite para a fábrica Atunlo, empresa que, diz a administração portuária, é a responsável por esta situação. “O responsável directo por qualquer situação de poluição, mau cheiro, etc., é sempre o operador do entreposto frigorifico. A Enapor não faz a gestão nem a operação do entreposto”, refere a Enapor. Quanto às criticas e responsabilização por parte da Delegacia de Saúde de S. Vicente, a empresa afirma a Delegacia de Saúde não deve nem pode responsabiliza-la e devolve esta “batata-quente” para esta autoridade sanitária: “Se tem competência na área da saúde pública porque não intervém?

Recorda-se que o Mindelinsite já abordou por diversas vezes, quer em forma de noticias ou de reportagens investigativas, a problemática do mau cheiro na Avenida Marginal. Este jornal vai continuar atento a esse fenómeno tendo em conta o impacto que poderá ter na vida económica e social de S. Vicente, ilha que recebe actualmente pelo menos quatro importantes investimentos turísticos e económicos, designadamente três hotéis e o Mindelo Floating Studio, um estúdio flutuante de gravação que será instalado nas águas dessa pequena enseada do interior da Baía do Porto Grande e que é promovido pelo empresário Samba Bathily, que promete colocar Cabo Verde no mapa turístico mundial. 

Constança de Pina

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