António Alves: Uma vida “camuflada” na história de São Nicolau

Nasceu em Lisboa, onde também foi baptizado, mas veio para São Nicolau ainda criança. Viveu por alguns anos numa propriedade agrícola da Ribeira Seca e, com seis anos de idade, fazia todos os dias o percurso a pé até a vila da Ribeira Brava, onde o pai mantinha um comércio, até completar o primeiro período da primeira classe. A partir daí, a família mudou-se para a Vila, onde continuou os estudos até a quarta classe.

Atingida a idade para ingressar o liceu, António Alves mudou-se para são Vicente onde teve aulas de explicação para o chamado “exame de admissão” no liceu com a professora Irene Almada. Fez o exame aos 11 anos, tendo como um dos seus examinadores Baltazar Lopes da Silva que veio a ser, no ano seguinte, o seu professor de francês. Esteve durante oito anos no liceu Gil Eanes, onde completou o sétimo ano. O desejo do pai era que ele se formasse em engenharia. Opção que descartou firmemente uma vez que não queria ser engenheiro. “A resposta que eu dei ao meu pai é que eu queria ser engenhocas. Assim, eu fui para a escola agrícola de Santarém, em Portugal. Infelizmente a minha bolsa de estudos, que era o bolso do meu pai, furou no mesmo ano quando ele faleceu. O sonho acabou”, relembra. Como se não bastasse, o jovem foi obrigado a ir para a tropa, onde permaneceu por quase cinco anos, no tempo em que começou a guerra colonial. Contou dias e noites até conseguir regressar à casa. “A tropa roubou-me quatro anos, cinco meses, vinte e quatro dias e vente e três horas da minha vida”, lamenta.

Sem mais o que fazer em Portugal, António regressou a Cabo Verde com vinte e cinco anos, para trabalhar e ajudar nas despesas da família e nos custos dos estudos do irmão mais novo. Ao voltar para São Nicolau, assumiu o comércio do pai, fundado em 1943, que ainda hoje é uma das lojas mais antigas da Cidade – a Casa Alves.

Como uma das pessoas mais antigas da cidade, António Alves viveu, junto com São Nicolau, uma grande e importante parte da sua história. Testemunhou o primeiro carro a chegar à ilha, em 1931. “Um camião do Estado que foi fazer o transporte de militares do porto da Preguiça para a Vila e para o Caleijão e também de deportados políticos, que durante muitos anos ficaram presos no Seminário Liceu de São Nicolau.”

Em pequenos pedaços de papel, Alves carrega rascunhos de fragmentos da história de São Nicolau e acontecimentos que marcaram o destino dessa ilha. Uma delas é sobre a vida e o curso do primeiro médico cabo-verdiano, o Doutor Júlio José Dias, em memória do qual ergueu-se um busto no Terreiro, no coração da Ribeira Brava. Júlio Dias fez o seu doutoramento sobre uma matéria que ainda não se conhecia no país, a litotrícia, conhecida como pedra nos rins. Ele foi ainda o fundador da primeira Botica da Ilha – um consultório médico onde também se vendia medicamentos.

Alves presenciou ainda a transformação de um dos grandes edifícios históricos da cidade da Ribeira Brava – a Igreja de Nossa Senhora do Rosário -, que já foi Sé Catedral e hoje catedral simbólica. O edifício foi construído em duas fases. Uma primeira no século XVIII, com apenas uma torre, e a segunda, que terminou em 1898, quando ganhou mais uma torre, a do relógio. Esta última fase foi possível, segundo António Alves, devido a uma oferta da família Leite, que colocou sua moradia à disposição para ser demolida e anexada ao espaço da igreja, hoje considerada a mais bonita de Cabo Verde.

Pelas memórias de António Alves conhece-se muito da história de São Nicolau, do seminário, bem como da centenária Capela de Nossa Sra de Sameiro de Monte Cintinha, cujos cem anos serão comemorados este ano, a 2 de Junho.

António Alves é considerado o português mais antigo da ilha de São Nicolau e quiçá de Cabo Verde. Segundo o mesmo, já passou na televisão nacional uma reportagem com uma senhora em São Vicente, considerada a portuguesa mais antiga do país. Entretanto, segundo os seus cálculos, quando esta senhora chegou a Cabo verde, ele já aqui estava há anos.

A parede da sua casa exibe alguns diplomas e condecorações, como o ultimo que recebeu em 2018 enquanto um dos fundadores do Externato. Também é reconhecido o seu contributo para o desenvolvimento do desporto cabo-verdiano e impulsionador do desporto em São Nicolau enquanto treinador da selecção da ilha. Consta ainda um diploma de louvor, atribuído pelo Procurador-geral da República pelos quase dezoito anos de trabalho na Justiça enquanto substituto do Procurador na ilha de São Nicolau. Um homem que revê sua história também na história de uma ilha que o acolheu ainda criança e que se converteu na sua casa até hoje.

Natalina Andrade (Estagiária)

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