Odete Lima pertence à geração da emigração afectiva. Segundo conta, cada jovem cabo-verdiana que viajava para Italia na altura levava consigo a promessa de encontrar uma família disposta a assinar um contrato de trabalho para a irmã, prima e amiga que ficou nas ilhas. Nos anos 1970 e ’80, e boa parte dos anos 1990, todas as promessas foram cumpridas, contribuindo assim para formar uma cadeia migratória para aquele país europeu. Mas, a prova suprema desta manifestação de afecto e de amor incondicional foi a chegada da segunda geração constituída pelos filhos menores. “Minha mãe emigrou para Angola em 1965, junto com minha avó, meus dois irmãos e uma tia. Na altura, era o país da colónia portuguesa com maior presença de cabo-verdianos e muito rico em termos de recursos naturais. Nasci na capital, Luanda. Minha mãe trabalhava num bar-restaurante. O meu pai era português, mas nunca viveu com a minha mãe”, conta.
Por: Maria de Lourdes Jesus
Como era a tua vida em Angola, mais precisamente na capital Luanda?
Odete Lima: Tive sempre uma vida muito linda em Luanda, recheada de muito afecto da minha família. Vivi na abundância. Residíamos numa grande e bonita casa. Era uma menina feliz: cresci bem, tinha as minhas amiguinhas e frequentava a escola com sucesso para a satisfação da minha mãe. Tinha tudo o que precisava. Nada me faltava.
– Qual foi a razão do vosso regresso a Cabo Verde?
Em 1975, após a independência de Angola de Portugal, os dois partidos principais (MPLA e Unita) não conseguiram chegar a um acordo para governar o país. A situação política deteriorou e a guerra civil explodiu. A insegurança gerada desse clima de guerra apoderou-se dos cabo-verdianos, que decidiram regressar ao país. Todas as pessoas que tinham um lugar para onde ir, fugiram, saíram de Angola. A minha mãe, como muitas outras famílias cabo-verdianas, decidiu regressar à sua ilha natal, São Vicente, mas foi uma tragédia. Excepto minha irmã mais velha, que decidiu ficar em Luanda, toda a família regressou a Mindelo. Meu pai foi para Brasil e nunca mais o vi. Não sei se está vivo ou morto. No entanto, conservo ainda a imagem dele da minha infância.
– Como foi a vossa viagem até chegar a S. Vicente?
Foi uma viagem terrível nessa época. Ficámos dois dias a dormir nas cadeiras do aeroporto de Lisboa porque não havia voo para a ilha do Sal. E o aeroporto estava mesmo cheio de passageiros à espera. Quando chegamos a Mindelo, fomos morar na casa da família da minha mãe. Mas foi muito difícil para toda a família habituada à abundância e à riqueza da vida em Luanda. Não era para termos regressado, ainda por cima quase sem nada, como aconteceu. Basta pensar que a minha mãe chegou ao ponto de vender todos os seus pertences e ficou sem nada, para a sobrevivência da família.
Regresso a casa
Como foi a vossa vida em S. Vicente?
Em S. Vicente, terminei o ensino básico, que tinha interrompido, e continuei o secundário. Acontece que em 1980 minha mãe emigrou novamente. Encontrou um emprego e foi para Itália. Eu e o meu irmão ficamos com a nossa avó. Infelizmente, depois de três anos, em 1983, a minha avó faleceu. Foi uma tragédia para toda a família. A minha mãe veio logo para S. Vicente e, debaixo do seu sofrimento, arrumou muito bem a família. Meu irmão ficou com uma nossa tia e eu, ‘fidja fêmea’ de 15 anos, fui com ela para Itália. Não havia outra solução. Estava destinada, como a maioria dos cabo-verdianos, a imigrar. Foi uma grande diferença. Continuei meus estudos em Roma, onde a minha mãe tinha reunido todas as condições para me receber.
– Como foi o seu acolhimento em Roma?
Cheguei à cidade no mês de janeiro de 1983 e fiquei muito contente com a nossa moradia. Minha mãe trabalhava como doméstica interna, mas não morava na mesma casa onde trabalhava, como a maioria das pessoas que exerciam essa profissão. Morávamos num anexo, ao lado da casa. Estava mesmo feliz de viver com a minha mãe num país de abundância, que me fazia lembrar os tempos felizes que vivemos em Angola. Logo que cheguei fui-me inscrever na Escola Portuguesa para poder continuar os estudos. Não falava ainda o italiano e, tendo essa alternativa, eu e a minha mãe optamos para essa escola frequentada sobretudo por cabo-verdianas, seja no ensino primário como no secundário.
Trabalhar muito cedo
Começou a trabalhar muito cedo, não obstante a desaprovação da sua mãe?
– Tinha apenas 15 anos, mas já era bastante responsável e não queria depender-me dela, visto que fazia muitos sacrifícios para manter a família em Cabo Verde. Queria ajudá-la. Assim, tomei a decisão de ir trabalhar. Ao ver-me a sair de casa, minha mãe começou a chorar porque não queria que a filha fizesse o mesmo trabalho dela. Eu fui consolá-la dizendo-lhe, com firmeza, que o trabalho era simplesmente um meio, um instrumento que me permitiria ser independente economicamente, pagar os meus estudos e comprar o que precisava, e que jamais teria abandonado os estudos. Prometi e cumpri.
Comecei a trabalhar com uma senhora já idosa. Depois continuei sempre com pessoas idosas. A minha vocação em dar assistência e cuidar dos mais velhos orientou-me na minha profissão e me incentivou a escolher o curso de enfermagem. Onde trabalhava tinha tempo para estudar e a possibilidade de continuar os estudos. Terminado o curso secundário, tentei entrar na universidade pública, mas na altura, com o diploma da escola portuguesa, havia alguns problemas e não consegui fazer a inscrição.
– Por que razão não viveu muito tempo em Roma?
Em 1988 enfrentei mais uma emigração, desta vez para os Estados Unidos, onde vivia o meu namorado. Nesse mesmo ano casamos. Mas após dois anos tive que regressar a Roma, porque já não conseguia continuar a viver na ilegalidade. Fiz vários trabalhos em Roma e, em 1992, nasceu o meu primeiro filho. Em 1995, através de concurso, ganhei o curso regional de enfermagem. Foi muito duro. Trabalhava, estudava com frequência intensiva e obrigatória e tinha um filho para cuidar. Mas consegui e com bons resultados! Tinha apoio das pessoas com quem trabalhei, que me ajudaram muito, e tinha a minha mãe sempre ao lado. Continuei em Roma a trabalhar como enfermeira até 2002. Por motivos familiares, regressei a S. Vicente onde trabalhei numa ONG. O filho maior terminou os estudos em S. Vicente e, em 2005, nasceu o meu segundo filho.
Retorno a Roma
– Podemos dizer que a formação dos seus filhos foi a razão do seu retorno à cidade de Roma?
Sim. O meu primeiro filho, terminado o secundário, concorreu e conseguiu entrar na faculdade de medicina na universidade La Sapienza, em Roma. Para ajudá-lo a integrar-se bem nos estudos e no ambiente, em 2014 regressei para Roma, trazendo comigo o pequeno, que também continuou a estudar e integrou-se muito bem.
– Como foi a sua reinserção na cidade de Roma, com a responsabilidade agora de dois filhos adolescentes?
– Não tive problemas. É um país que conheço bem, falo a língua, sei como estar e viver. A Itália é a minha segunda pátria, um país que amo pela sua beleza e cultura, pelas amizades e oportunidades que me deu de crescer como ser humano. Mas, em 2019, regressei em definitivo para Cabo Verde. O meu filho maior é agora médico e continua em Roma na especialidade de cirurgia. O mais novo terminou este ano o décimo segundo. A minha mãe, depois da reforma, vive em S. Vicente e os meus irmãos em Portugal. Neste momento estou lecionando numa instituição de ensino superior no curso de turismo. Além da formação como enfermeira, tenho especialização na área do turismo e na valorização do território. São áreas essenciais para o desenvolvimento local onde quero dar a minha contribuição.