Uma homenagem ao mestre dos mestres Paulino Vieira: a alma invisível da música cabo-verdiana

Christian Lopes

Paulino Vieira é, incontornavelmente, uma das figuras maiores da cultura cabo-verdiana. Compositor, multi-instrumentista, produtor e arranjador de excelência, o seu legado transcende a técnica e o palco: é um património vivo da identidade musical do país.

Homenageá-lo é, por isso, mais do que um gesto de reconhecimento pessoal. É um ato de justiça cultural. É reconhecer, com sobriedade e gratidão, a importância daqueles que, a partir dos bastidores, constroem o que de melhor temos como expressão coletiva: a música.

Ao longo de décadas, Paulino moldou o som de Cabo Verde com sensibilidade rara. Trabalhou com alguns dos nomes mais reconhecidos da nossa história musical (Cesária Évora, Bana, Ildo Lobo, entre outros) e fê-lo sempre com discrição, profissionalismo e um sentido estético profundamente enraizado nas raízes culturais cabo-verdianas. O seu domínio técnico era absoluto, mas o que verdadeiramente o distingue é a forma como fazia da música uma linguagem universal de sentimento, pertença e identidade.

Ainda me recordo da sua passagem pela Escola Municipal de Artes Tututa, onde, enquanto criança e eterno aluno desta instituição, tive o privilégio de estar pela primeira vez na sua presença. Paulino não precisava de palavras para ensinar. Bastava vê-lo tocar, ouvir o que saía dos seus dedos, para compreender que estávamos diante de alguém absolutamente excecional. Confesso que, na altura, eu não sabia bem quem ele era. E hoje eu lamento não ter aproveitado mais a sua presença, o seu saber, a sua sabedoria.

Uma das execuções que mais aprecio aconteceu durante uma interpretação da música “Rotcha Scribida” gravada por Cesária Évora (vídeo disponível no youtube), em que Paulino acompanhava ao piano e, a meio da música, executou um solo de harmónica com tal mestria, sensibilidade e duração, que me revelou com clareza o que é a genialidade em estado puro: uma combinação rara de técnica, emoção e espírito.

Hoje, mais do que nunca, sentimos que é preciso dar a conhecer a Cabo Verde, principalmente aos jovens, os maiores talentos que o país tem, os mestres que ainda temos entre nós, e valorizá-los devidamente enquanto é tempo. Precisam saber quem é Paulino Vieira. Precisam saber, que houve (e há) mestres que dominaram a arte com entrega, rigor e emoção. Precisam valorizar os que vieram antes, não só os cantores, mas os que fazem os cantores brilhar: os instrumentistas, os arranjadores, os professores, os guardiões da tradição. Precisamos de promover a transmissão do saber, da memória e da identidade cultural que eles carregam. Porque não há futuro sólido sem memória viva. E a música cabo-verdiana, que é uma das nossas maiores riquezas, só continuará a crescer com raízes fortes, com reconhecimento justo e com políticas culturais que não esqueçam quem verdadeiramente faz acontecer.

Esta homenagem é, por isso, também dedicada a todos os instrumentistas, professores de música, arranjadores e músicos do nosso país, que, muitas vezes fora do foco mediático, sustentam a qualidade e a autenticidade da música cabo-verdiana. Aos que, com resiliência e amor à cultura, mantêm viva a alma sonora de Cabo Verde. Aos que inspiram sem exigir protagonismo. Aos que formam, transmitem e preservam. São eles que constroem a base da nossa cultura, da nossa coesão, daquilo que nos representa nos quatro cantos do mundo.

Se Cabo Verde quiser realmente crescer com raízes, tem de começar por valorizar quem as plantou. Paulino Vieira é, na sua essência, um símbolo de excelência, de humildade e de compromisso com a arte e com o país. Ao prestarmos esta homenagem, reiteramos o nosso dever coletivo de reconhecer os fazedores da cultura, não apenas quando partem, mas enquanto vivem e criam. Porque valorizar os nossos mestres é valorizar Cabo Verde.

Ao mestre Paulino, e a todos os mestres invisíveis da nossa música, MUITO OBRIGADO.

Sair da versão mobile