Uma história desconhecida: A luta titânica do rebocador Damão para impedir o petroleiro Karg-5 de derramar toneladas de crude óleo na ZEE de CV

Por: António Cruz Lopes

Entre 16 de janeiro e 03 de fevereiro de 1990, devido a um acidente marítimo, o petroleiro de bandeira iraquiana KARG-5 esteve prestes a derramar toneladas de óleo-crude na Zona Económica Exclusiva de Cabo Verde e poluir as encostas e praias balneares das ilhas do Norte. A ameaça foi contida por um esforço titânico da tripulação do rebocador Damão sob orientação do Comandante António Cruz Lopes, apoiado por um contingente militar comandado pelo Capitão da Bandeira, o Comandante Augusto “Zuca” Israel Duarte, apesar das condições climatéricas e de sobrevivência desafiadoras. Esta é uma história desconhecida de muita gente e que prometi contar na primeira pessoa quando passasse para a condição de reformado.

Enquanto profissional, o nosso percurso passou pelos altos serviços prestados à nação. Um dos episódios de reconhecida relevância versa sobre uma missão oficial no âmbito da segurança e proteção ambiental. De tão impactante, fomos por diversas vezes abordados por alguns escritores e poetas que, na sua maioria, já não se encontram entre os vivos. Outros, no entanto, continuam no ativo e em boa forma. Diria que mostraram interesse em conhecer melhor o acontecimento e assim apresentar essa aventura em livro. Todavia, declinamos a solicitação com o argumento de que o protagonista, após a reforma, deveria ser o primeiro a divulgá-la.

Tudo aconteceu entre 16 de janeiro e 03 de fevereiro de 1990 aquando da passagem do navio sinistrado “KARG-5” próxima da ZEE de Cabo Verde. À data, o país estava a preparar a passagem do regime de Partido Único para o de Democracia Multipartidária, dando assim os seus primeiros passos como um Estado de Direito Democrático. Este quadro sublevou as equipas destacadas para essa operação de salvaguarda a maiores responsabilidades, cujo objetivo era conter a entrada desse petroleiro na nossa ZEE e evitar um provável derramamento de óleo-crude nas nossas águas.

Assim, tivemos o privilégio de comandar e executar essa delicada e até complexa missão de defesa da ZEE de Cabo Verde, isto no período da primeira guerra do Kwait com o Iraque. A bordo do Rebocador Damão partiu para o alto-mar uma tripulação de uma dúzia de marinheiros – chamados “lobos do mar” – e uma Esquadra composta por militares fuzileiros navais devidamente armados para proteger o país daquela que poderia ser a maior poluição marítima de sempre em Cabo Verde. O derramamento no mar de toneladas de combustível pesado poderia chegar às ilhas da região de Barlavento, ou seja, Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, seus Ilhéus e São Nicolau.

Petroleiro iraquiano Karg-5

A acontecer o sinistro com o navio “KARG 5” – um Very Large Crude Carry (VLCC) de 320 metros de comprimento – as consequências poderiam ser altamente nefastas para o ecossistema marinho e terrestre envolto e as infraestruturas costeiras. Até as praias de banho poderiam ser atingidas pelo transporte do crude pela corrente marítima. Caso para se afirmar que Cabo Verde é um dos países protegidos por Deus.

Essa saga foi em parte provocada pelo mau tempo que se fazia sentir na altura. Destacada para essa ingente operação de manter o petroleiro longe do território marítimo cabo-verdiano, a tripulação do Rebocador Damão e o contingente militar enfrentaram dificuldades indiscritíveis durante mais de duas semanas. Tanto os militares como os tripulantes estiveram 10 dias sob penúria de água potável e de alimentos, situação agravada pela falta de condições para o descanso visto que os camarotes estavam alagados. Além disso, a temperatura dentro do rebocador era muito elevada devido a falta de exaustores adequados na casa das máquinas, isto agravado pelo estado do tempo que se fazia sentir.

Enfrentamos vento tempestuoso e mar na mesma intensidade em altura e proporção, que não permitiam confecionar uma alimentação razoável e capaz para a tripulação a bordo, cujos membros basicamente sobreviviam de meia chávena de sopa/dia feita com água salobra, quando possível, e preparada pelo cozinheiro nas condições já descritas. Perante tanta penúria, toda a tripulação ficou debilitada.

A bordo e em terra eramos seguidos pelos jornalistas da RCV, designadamente Júlio Vera-Cruz Martins, que divulgava o resumo diário da operação, e por um jornalista francês que, a nível Internacional, acompanhava o movimento do navio sinistrado a partir da Casablanca – Marrocos. Este trabalho resultou na publicação numa revista francesa de um artigo elogiando Cabo Verde, que tinha como Primeiro-ministro o Comandante Pedro Verona Rodrigues Pires, e as Autoridades Marítimas Nacionais, pelo empenho na defesa e proteção da sua ZEE, e dos oceanos em geral. O artigo dizia: “Cabo Verde prestou grande serviço na sua ZEE aquando da passagem do Navio “KARG 5” que, devido a uma explosão num dos tanques de Bombordo, com cerca de 70.000 toneladas, vazava “crude-óleo” numa esteira/extensão superior a 35 milhas náuticas por onde passava”.

Recordemos que o sinistro ocorreu com o navio ancorado no Porto da Casablanca – Marrocos, tendo sido afastado pelas autoridades marítimas locais do porto e escoltado para as Ilhas Canárias, que não permitiram a entrada na sua ZEE. Rumando para as Ilhas da Madeira, foi de imediato intercetado e escoltado pela Marinha Portuguesa, que o desviou para o Sul. Em tempo útil, as Autoridades Portuguesas alertaram as suas homólogas cabo-verdianas sobre a situação e, por esse facto, fomos chamados para essa grande e nobre missão de servir o país.

Rebocador Damão

Penúria de água e comida

Devido ao mau estado do tempo e as precárias condições de habitabilidade a bordo do rebocador, enfrentamos penúria de água e comida e alojamentos alagados, o que nos obrigou a impor normas de sobrevivência, condicionando as pessoas a bordo: além da meia chávena de sopa diária, passamos a comer as rações existentes na Baleira do Rebocador (uma pastilha por pessoa/dia), e peixe, o chamado “alma de cozinheiro”, quando era possível recolher no convés, com a indicação clara de se mastigar a carne do peixe, engolir o suco e deitar fora a carne mastigada. Condições essas que nos levaram a ficar muito debilitados, obrigando-nos a pedir socorro para o reabastecimento do Rebocador Damão em géneros alimentícios, água, dentre outros.

Ao nosso apoio foi despachado o Rebocador “Cabo Verde” que, por ironia do destino, não conseguiu enfrentar o mau tempo e sofreu um blackout geral, tendo ficado à deriva ao Sul de São Pedro da Ilha de São Vicente. Nessa fase, o navio KARG 5 estava a 240 milhas náuticas a Sul da Ilha Brava e tivemos de suspender a operação para ir ao encontro do R/M Cabo Verde e reboca-lo até ao Porto Grande para ser reparado. De regresso à cidade do Mindelo, e dada a nossa condição física debilitada, solicitamos a assistência médica para toda a tripulação, que foi submetida a observação. Como era previsto, foi recomendado repouso absoluto, principalmente ao Capitão, o que levou a Direção-Geral da Enapor a procurar um substituto. No entanto, isso não se concretizou em virtude de pessoas contactadas terem declinado o convite alegando motivos de saúde.

Sabendo do perigo ainda latente, mesmo debilitados e sob forte recomendação médica para repouso, com a plena consciência dos riscos a que as referidas ilhas estavam sujeitas, decidimos retomar a ação anterior, seguindo viagem para livrar o país da eminente ameaça da catástrofe de uma poluição marítima. Alcançado o navio “KARG 5”, ainda a Sul de Cabo Verde, o mesmo foi posteriormente acompanhado por nós e desviado para a ESSE (Este-Sudoeste), onde foi deixado próximo da ZEE da Libéria, já sem risco para a ZEE de Cabo Verde.

De referir que durante 24 horas de escala no Porto Grande, o rebocador Damão foi submetido a manutenções de urgência, designadamente a mudança de óleo e filtros dos geradores e dos motores principais. Foi igualmente feita a manutenção das bombas de injeção, injetores e, o mais complicado, a reparação de um grupo gerador, cujo alternador deixou de funcionar durante a viagem. Trabalhos estes que nunca tinham sido feitos em tempo tão recorde, designadamente do alternador do gerador nº 2, totalmente rebobinado, ficando o verniz por secar na viagem para o rebocador poder continuar a referida missão.

Mensagens ofensivas do comandante do KARG-5

Quanto aos contactos com o Comandante do navio sinistrado não foram de todo salutares por termos recusado o convite para uma visita a bordo do “KARG 5”. A escada quebra-costas foi lançada para possibilitar a visita, o que responsavelmente declinamos. Negado o convite para subir a bordo, o Comandante do navio “KARG 5” chamou o rebocador Damão de baleeira, com tons de comunicação desagradáveis. Durante os três primeiros dias, as suas palavras eram sempre na base de obscenidades, por não termos permitido a entrada do navio “KARG 5” em “shelter water” das lhas de São Vicente e Santo Antão, local onde reunia as melhores condições do estado do tempo, segundo as suas pretensões, para procederem a trasfega da carga para um navio irmão que estava de stand-by e preparado para o transbordo do combustível crude-óleo. O N/T “KARG 5” esteve sempre assistido por dois grandes rebocadores de alto-mar e esporadicamente por uma aeronave que sobrevoava as ilhas para encontrar locais onde poderia ser feito o transbordo do produto.

Após os três primeiros dias, não suportando mais as ofensas verbais do Comandante do citado navio, que tentou por diversas vezes atingir a dignidade de Cabo Verde, a estratégia adotada por nós foi informar ao Comandante do “KARG 5” das entidades oficiais que acompanhavam a comunicação, entre os quais o Primeiro-ministro. Dito isto, o N/T “KARG 5” deixou de comunicar connosco e constatamos que o Comandante passou a seguir as nossas orientações, navegando sempre com rumo paralelo ao nosso, para execução do traçado da defesa da ZEE – Cabo Verde.

Pelos resultados alcançados e esforços consentidos, o Governo de então concedeu à ENAPOR e a tripulação do Rebocador Damão, na pessoa do seu Comandante, uma “Menção Honrosa” de altos serviços prestados à Nação pela coragem e determinação na liderança de uma equipa de profissionais do mar, na condução dos trabalhos. O documento foi averbado nas Cédulas dos tripulantes do Rebocador Damão e registado no Livro de Inscrição Marítima existente na Capitania dos Portos de Barlavento, pelos esforços e dedicação de todos os envolvidos nessa operação.

Sensibilizado e comovido, quero agradecer do fundo do coração toda tripulação, colegas e colaboradores em geral e em particular àqueles com quem tive o privilégio de trabalhar diretamente. Gostaria de dizer-lhes que nada teria sido possível sem o valioso empenho, dedicação e paciência de cada elemento e endereçar um agradecimento especial sobretudo ao Comandante Zuca.

Um bem-haja a todos.

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