Um mal nunca vem só: Covid-19, sede de poder e desgovernança

Por: Alcides J. D. Lopes*

Endemias, Epidemias  e Pandemias

Na terminologia médica, o vocábulo demia é identificado como um elemento de formação pospositivo que exprime a ideia de doença generalizada a uma população. Neste tipo de linguagem técnico-científica, os processos de formação de palavras conhecidos pelas gramáticas formais, como derivação e composição, sofrem algumas restrições.  Assim, aconselha-se evitar, sempre que possível, elementos de diferentes idiomas carregados de significado híbrido – que não sejam radicais, prefixos e sufixos gregos e latinos. Portanto, os prefixos gregos: en – relacionado à idéia de intensidade reiterada numa região; epi – entendido como acima, neste caso, no contexto da população; e pan – que se refere a tudo e aponta para um todo, quando juntados ao termo demia [endemia;epidemia;pandemia], conferem qualidades no contexto do impacto e da disseminação das condições, intensidades e níveis de propagação a uma doença numa população, entre populações de diferentes regiões ou países e em várias regiões/populações do planeta, respectivamente. 

Considera-se que os termos endemia e epidemia  são dos mais antigos em medicina. Entretanto, quando se indaga sobre a diferença entre eles, logo ocorre a ideia de que a epidemia está caracterizada pela incidência, num curto período de tempo, de grande número de casos da doença, enquanto endemia traduz-se pelo surgimento de menor número de casos ao longo do tempo.

Mas, na realidade, o que define o caráter endêmico de uma doença é o fato dela ser a mesma peculiar a um povo, país ou região. A própria etimologia da palavra endemia denota este atributo. Endemos, em grego clássico, significa “originário de um país, indígena”, “referente a um país”, “encontrado entre os habitantes de um mesmo país”.

Pandemia, por sua vez, formada com o prefixo neutro pan e demos, povo, acredita-se ter sido utilizada pela primeira vez por Platão, em seu livro Das Leis. Platão usou-a no sentido genérico, referindo-se a qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a população. No mesmo sentido foi também utilizada por Aristóteles. O médico romano, de origem grega, Galeno de Pérgamo utilizou o adjetivo pandêmico em relação às doenças epidêmicas de rápida propagação. A incorporação definitiva do termo pandemia ao glossário médico firmou-se a partir do século XVIII, encontrando-se o seu registro em francês no “Dictionnaire universel français et latin“, de Trévoux, de 1771.

Breves apontamentos históricos das fomes, secas e doenças.

Se considerarmos uma breve história das secas, das fomes e das epidemias resultantes nos territórios ocupados pelos navegadores europeus desde o séc. XV, percebemos que, no caso cabo-verdiano, existem registros de severas secas cíclicas, gerando terríveis fases de fome e todas as epidemias que as acompanham, desde 1508.  Ao apreciar o número de vítimas, em relação a população total, com vistas a avaliar a sua importância, Amílcar Cabral demonstrou que nos períodos de crise do século XVIII a fome ceifou 50% da população das ilhas. Entre as crises cíclicas, as quais aconteciam entre períodos de aproximadamente duas décadas, temos um pico de 40% no final do século XIX e de 35% na última crise do século XX.

Cabral demonstra que em 223 anos (1747-1970) o povo de Cabo Verde viveu mais de meio século de fome, com um número total de vítimas superior à população do arquipélago nos anos 1970. No século XX, o país sofreu 21 anos de fome, tendo perdido em cada uma das “grandes fomes” (precisamente aquelas que vão coincidir com o período das guerras de 1914-18 e 1939-45), entre 15% e 35% da população. Em cada quatro anos dos últimos dois séculos de dominação portuguesa, o homem cabo-verdiano que vivia em permanente estado de “fome específica”, sofreu um ano de “fome total”. 

Um fato bastante curioso, quando Charles Darwin, durante a famigerada expedição a bordo do Beagle, ancorou na ilha de Santiago e o mesmo acampou  no ilhéu de Santa Maria, este era o plano B. Nos planos iniciais da viagem, a equipe pretendia aportar em Tenerife. Contudo, relatos de ocorrência de cólera na Inglaterra impunha um período de 12 dias de quarentena aos tripulantes do navio. Foi este o motivo que fez os destinos da ilha de Santiago e a famosa exploração de Charles Darwin entre os anos de 1832 a 1836 cruzarem-se. 

No nordeste do Brasil, por exemplo, existem registros das fomes e epidemias pelo menos desde 1552. Missionários Jesuítas registraram ciclos de seca que vitimaram principalmente porções da população nativa. De 1877 a 1879, o estado brasileiro do Ceará foi devastado pelo que ficou conhecido como a Grande Seca, vitimando metade da população cearense, aproximadamente 500.000 almas ceifadas num espaço de 24 meses, pelas doenças epidêmicas, pelo crime e pela inanição. Afetados pelo profundo impacto de tal calamidade, dezenas de milhares de cearenses tiveram de abandonar o sertão e aventurar-se nas periferias da cidade de Fortaleza, pelo Brasil e pelo mundo afora.

O imperador Dom Pedro II jurou vender todas as jóias da coroa para  socorrer as vítimas da Grande Seca. Enviou o marido da sua filha princesa Isabel, o conde Gaston D’Orléans, para liderar uma comissão e avaliar a situação em 1879. O príncipe Gaston viajou pelo nordeste do Brasil e fez numerosas sugestões, sendo que nenhuma considerava as dimensões sociais e sim, soluções tecnológicas e agrícolas: a construção de barragens e reservatórios; a escavação de canais de irrigação e a transposição do Rio São Francisco, um projeto retomado pelo governo Lula, com finalidades sociais e que ainda é objeto de inúmeras controvérsias.  

Portanto, se levarmos em consideração como a pandemia provocada pela SARS-CoV-2 alterou drasticamente os modos, através dos quais milhões de pessoas pelo mundo afora regulavam suas vidas, antevê-se, ou pelo menos conjectura-se, que muitas destas mudanças serão temporárias. Mas, se considerarmos os efeitos a longo prazo, podemos relacionar como a peste bubônica, do século XIV, causou mudanças estruturais que interferem indiretamente na ascensão da Europa Ocidental, nos séculos subsequentes.

Ou ainda, como as mortes em massa nas Américas no séc. XV – 55 milhões em cem anos – causadas pela varíola, sarampo, tifo, cólera, malária, difteria e outras doenças trazidas pelos colonizadores podem ter influenciado as alterações climáticas, segundo estudo realizado no Reino Unido. Como a febre amarela devastou o exército de Napoleão cuja força hipnótica estava obstinada a erradicar as revoltas no Haiti, no início do séc. XIX. Estima-se que 50.000 soldados, oficiais, médicos e marinheiros da imponente frota da marinha francesa pereceram por causa de um mosquito originário do continente africano, o famoso aedes aegypti. Devido à ausência de imunidade natural, apenas 3000 europeus retornaram à casa. 

Em 1803, a compra da Louisiana pelos EUA selava o destino fatídico das ambições coloniais francesas na América do Norte. No Brasil da atualidade, outra doença transmitida pelo mesmo mosquito, a dengue, manifesta-se através de ciclos endêmicos e de picos epidêmicos explosivos a cada 4 ou 5 anos, desde 1981. Em 2019, por exemplo, registou-se um aumento de casos de infecção em mais de 400% com relação ao ano anterior, contabilizando 782 mortes, de acordo com a OMS.

Epidemias, Poder e (Des)governança 

Enfim, a história conta-nos como as doenças surtiram grandes efeitos ao longo dos tempos, interferindo na ascensão e queda de impérios ou servindo como tabela de administração nos governos coloniais. 

No Ocidente, desde a era da autoridade tradicional – no sentido weberiano -, quando reis dependiam do folclore e das crenças para justificar o poder e a sua obsessão pelo divino; passando pela autoridade carismática, cujo maior representante encontra-se em Napoleão Bonaparte e sua poderosa habilidade de provocar, com uma personalidade magnética, paixões e ímpetos naqueles que comandava; até a contemporaneidade da autoridade burocrática, quando o poder é exercido  através do conhecimento e das técnicas de codificação burocráticas, as epidemias e as pandemias desempenharam um papel importante na emergência, manutenção e derrubada de regimes, dinastias e impérios. 

A atual derrocada do trumpismo nos EUA, nos tempos atuais, é bastante alusiva. Se alguma vez houve intenção do eleitorado norte americano de re-eleger Trump, hoje não existem dúvidas de que tanto a sua performance como presidente, como a do seu governo, frente a devastação provocada pela pandemia da Covid-19 no país, como também, do seu comportamento tendencioso durante os grandes protestos e distúrbios públicos, generalizados em vários estados, em resposta à morte cruel de George Floyd erodiram de forma acentuada tais disposições. Evidentemente, o resultado das eleições motivam as minhas conclusões. 

Certamente, a invasão do Capitólio (Rioters at the Capitol), no dia de 6 de janeiro  de 2021, teve repercussões cinematográficas e rendeu-lhe um processo de impeachment, um tanto estranho – por não ser mais presidente. Mas, uma análise mais abrangente questiona, por exemplo, de que modo fatos aparentemente simples e curiosos como a interdição prévia de participar das homenagens fúnebres do senador republicano John McCain em 2018, imposta a priori pela pessoa do próprio falecido e a posterior atitude desrespeitosa provocada pela ausência deliberada do presidente dos EUA no velório do senador democrata John Lewis em 2020 , uma referência mundial na luta pelos direitos humanos (cujo busto foi vandalizado na invasão ao Capitólio), revelam evidências que, por um lado, indicam a erosão política que Trump sofria sua própria base republicana e, por outro, a sua atitude pessoal fora indigna daquele que se espera de um chefe de estado. 

Nos EUA, o nível de registro de novos casos diários chegou ao assombroso número de 274.627 novas infecções no dia 8 de janeiro de 2021, uma semana após as comemorações do Ano Novo. Durante aquela semana, o número de casos fatais em um único dia chegou a 4.085 óbitos em 24h00 (do dia 7 para o dia 8 de janeiro de 2021). Na respectiva semana, de 2 a 9 de janeiro, foram contabilizados quase 20 mil mortes e um milhão e meio de novos casos. No total, estima-se que a pandemia da Covid-19 matou quase meio milhão de pessoas até o presente momento nos EUA.

A Índia, embora figure como o segundo país com maior número total de casos ativos, o  total de mortes foi estimado em torno de 156 mil. Uma boa notícia é que por lá parece que a doença está finalmente sendo controlada com a vacina, na medida em que os maiores picos foram registrados nos dias 12 e 17 de setembro de 2020. Desde então, o registro diário de novos casos caiu acentuadamente de 97 mil casos diários para um número que agora oscila entre 9 e 11 milhares.

Por sua vez, o Brasil computa aproximadamente 240 mil mortes pela Covid-19. Desde as primeiras infecções registradas em fevereiro de 2020, as autoridades têm sido acusadas de negligência e de inação na tomada de medidas preventivas como a realização de testes em aeroportos, portos e fronteiras. À semelhança do presidente norte americano, Bolsonaro, presidente do Brasil, negacionista, tem desempenhado um péssimo papel. Antes, contribuindo para o estabelecimento de desconfiança em vários setores da sociedade, encorajamento ao incumprimento das medidas de isolamento e a promoção de aglomerações e medicamentos que hoje sabe-se não ter eficácia nenhuma, além de provocar graves efeitos colaterais.

E a Covid-19 no continente africano? 

Mais de um ano após a primeira infecção registrada na província de Wuhan-China, a população mundial, atual hospedeira do vírus da Covid-19, tem prestado pouca ou quase nenhuma atenção ao desempenho ou à impenetrabilidade do mesmo na grande maioria dos países africanos. Eventualmente, sabe-se que nos países do norte tais como Marrocos, Argélia, Líbia, Tunísia e Egito as taxas de infecção e mortalidade são maiores do que as dos países sub saharianos, onde apesar de haver aumentos, estes não chegaram aos níveis exponenciais como das Américas, Índia e Europa. Uma exceção gritante tem sido a evolução da pandemia na África do Sul, onde o número de vítimas fatais já se aproxima de 50.000 mortes.

Evidentemente, nos países subsaharianos o vírus não seguiu a mesma dinâmica de transmissão observada no Ocidente. Caso isso tivesse acontecido, hoje estaríamos testemunhando taxas explosivas de mortalidade em vários desses países. O momento, mesmo com a realidade atual da vacinação em vários países desenvolvidos, não é para baixar a guarda; a fila de espera pode ser longa e as partes interessadas em adquiri-las já deram provas de deslealdade competitiva.   Além do mais, vários países ainda estão atravessando uma nova onda de infecções que já superou os recordes anteriores, sem falar na variedade de novas cepas que vem surgindo, por exemplo, em Manaus, no Brasil, na África do Sul.

Se compararmos o estado de Pernambuco-Brasil com Senegal, por exemplo, vamos constatar que no país africano, com quase o dobro da população de Pernambuco, o total de vítimas fatais é menor do que 800 óbitos. Em Pernambuco, computam-se mais de dez mil almas ceifadas. Da mesma forma, uma comparação entre a cidade de São Paulo, Brasil, e a cidade de Lagos na Nigéria revela que aquela cidade brasileira com uma população de 12.33 milhões de habitantes perdeu mais de 55 mil pessoas, desde o início da pandemia até o atual momento. Por sua vez, Lagos, com 23 milhões de pessoas, contabiliza um número inacreditável de pouco mais de 300 mortes. Finalmente, Nigéria, com uma população de quase 200 milhões de pessoas, ou seja, bem próxima a população do Brasil (209.5 milhões), perdeu 1.734 pessoas, desde o início da pandemia, enquanto as terras tupiniquins contabilizam o colossal número de 235 mil mortes. 

Estas disparidades são gritantes e abissais. Entretanto, ao serem confrontados com dados tão incompatíveis, o impulso entre os observadores internacionais têm sido o de identificar em vão supostas causas ou motivos destas diferenças. Inicialmente, a capacidade de realização de testes por parte dos países africanos foi amplamente questionada. Como pôde ser conferido posteriormente, os testes são uma realidade. O jornal The New Yorker na reportagem publicada em maio de 2020 “What African Nations are Teaching the West about Fighting Coronavirus”, revela que os pesquisadores ocidentais têm citado desde o clima, a demografia, até a mágica para justificar seus argumentos. O fato é que tanto o calor quanto a umidade são também expressivos no Brasil e na Índia onde as taxas de mortalidade dispararam. Outros argumentam sobre a relativa juventude da população do continente (média de 20 anos), ou mesmo de uma predisposição imunológica favorecida pelos tratamentos anteriores de doenças como a malária, que pode funcionar como um talismã biológico face às novas doenças.

Não restam dúvidas que estas evasivas fazem parte de um discurso marcadamente tendencioso que procura evitar possibilidades óbvias que nos encaram de frente. Com o passar do tempo, viemos a aprender que vários governos africanos têm feito um ótimo trabalho desde a administração inicial do coronavírus através de uma reação mais agressiva do que as Américas e a Europa por meio do rastreamento, isolamento e teste dos casos suspeitos e seus eventuais contatos. Entre vários, podemos citar os casos exemplares de Senegal e Ruanda. Este último, cuja população excede os 12 milhões de habitantes, apresenta um número de 233 óbitos desde o início da pandemia. Portanto, pode-se notar que embora os números de óbitos em Cabo Verde (138) seja menor do que os de Ruanda, a resposta de Cabo Verde à pandemia está muito aquém do desempenho deste país continental da África Oriental, também conhecido pelos seus vulcões, considerando que a população do arquipélago ultrapassa pouco mais de meio milhão de habitantes.

*Músico e Antropólogo, Ph D.

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