Um acto banalizador da Independência Nacional*

Luís Fonseca

“Escandaloso: é o mínimo que posso considerar esse acto banalizador da Independência Nacional, que, pela boca da mais alta figura do Executivo cabo-verdiano, expurga da história deste país o seu capítulo mais decisivo para conquistar a sua soberania, a luta de libertação nacional – e não estejamos com fingimentos – concebida e conduzida, até 5 de Julho de 1975, pelo PAIGC, sob a direção de Amílcar Cabral.

Tenho 81 anos, já vi e vivi muitas coisas, algumas surpreendentes. Acabo de experimentar mais um momento surpreendente ao escutar os discursos pronunciados na sessão da abertura oficial das comemorações do quinquagésimo aniversário da Independência de Cabo Verde. Estou indignado.

Normalmente, quando um país comemora o aniversário da sua fundação existe um esforço de congregar a Nação à volta das celebrações para promover o entendimento, o diálogo e a união dos cidadãos. Em Cabo Verde, o Governo, que entendeu não associar às comemorações os protagonistas ainda vivos do processo que conduziu ao mais importante momento existencial de Cabo Verde enquanto Estado soberano, preferiu defender que a independência foi um acontecimento fortuito, uma simples vírgula numa “narrativa” em que o partido no poder surge como salvador da pátria.

Escandaloso: é o mínimo que posso considerar esse acto banalizador da Independência Nacional, que, pela boca da mais alta figura do Executivo cabo-verdiano, expurga da história deste país o seu capítulo mais decisivo para conquistar a sua soberania, a luta de libertação nacional – e não estejamos com fingimentos – concebida e conduzida, até 5 de Julho de 1975, pelo PAIGC sob a direção de Amílcar Cabral.

Para acentuar essa desvalorização, escolhe-se para o arranque das comemorações a data do 25 de Abril, com o objetivo de retomar a tese daqueles que se opuseram à Independência destas ilhas, de que ela foi uma mera concessão da potência colonial. Não que o 25 de Abril não tenha significado no processo. Ele foi de grande importância porque conduziu ao fim do conflito que nos opunha ao Estado colonial. Mas, como o reconheceu o próprio Embaixador de Portugal, o único dos oradores a pronunciar um discurso com elevação e cuidado com a verdade histórica, o 25 de Abril nasceu da consciência dos militares portugueses perante as vitórias dos movimentos de libertação – especialmente do PAIGC, com protagonistas ainda vivos, lúcidos e residentes neste país, liderados pela mais destacada figura de toda a história de Cabo Verde.

Registo aqui o meu reconhecimento ao Sr. Embaixador, por recordar ao Presidente da Câmara e ao Primeiro-Ministro a existência de Amílcar Cabral, que parece ser mais respeitado pelas autoridades do país cujo regime colonial combateu, do que pelo Governo desta terra por cuja libertação sacrificou a sua vida.

É inacreditável que um Chefe de Governo de Cabo Verde (tal como o Presidente da Câmara) consiga fazer um discurso alegadamente sobre a Independência de Cabo Verde sem sequer pronunciar o nome de Amílcar Cabral. Será que considera Cabral uma espécie de passageiro clandestino na rota para a independência?

Sr. Primeiro Ministro: por muito que se esforce por negar a sua existência, a Luta de Libertação Nacional existiu, muitos sacrificaram a sua juventude, a sua liberdade e a sua vida para que ela triunfasse. Eu próprio, tenho sobre os meus ombros, nessa luta, vários anos de encarceramento no Fortim, na Cadeia Civil da Praia e no Tarrafal.

E essa luta triunfou, precisamente no dia 5 de Julho de 1975, a data da Independência de Cabo Verde. Por mais o que o Senhor e o seu Movimento se esforcem por apagar a história, procurando desvalorizar a sua importância, haverá sempre cabo-verdianos que se colocarão uma simples questão: como é que chegámos à independência?

Cabral é frequentemente citado por ter afirmado que os colonialistas nos fizeram sair da história. Ele nunca teria certamente imaginado que num dos países que ele fez regressar à história como Estado independente e soberano, um dos seus mais altos responsáveis se empenharia em tentar repetir essa façanha colonial.

*Título da redação do Mindel Insite

Sair da versão mobile