Triângulo Portugal, Brasil e Cabo Verde em perdão Emília

“Perdão Emília ê única morna que um sabê tudo sê letra”…… é o trecho de uma conversa que tive com um amigo músico na pastelaria Modelo em Chã de Cemitério, ao lado do Liceu Ludgero Lima, depois de ver o cartaz do serão de sexta feira. Um cartaz que destaca a jovem Carla Lima acompanhada do pianista Zé Afonso.

Por: João Delgado da Cruz

Perdão Emília era uma música proscrita na nossa casa. Causava-me calafrios esse diálogo sepulcral post mortem, e a minha tia-avó, Mãe Ia, de nome de batismo Emília, não gostava da referência onomástica e as coincidências da fortuna que emergiam da sua alma de linda mulher que despertou muitas paixões. 

O marido emigrou para a Argentina e não regressou. Esse meu tio-avó foi comido pela  “terra longe”. Era a encarnação do mito “terra longe tem gente gentio, gente gentio come gente”. 

A letra lembra-me a poesia Ultra-romântica de Félix de Valois Lopes da Silva de pseudónimo Guilherme Ernesto, poeta nascido em 1889 na Ribeira Grande, Santo Antão:

“Ao ermo triste, que o pesar consome,

que a Desventura para um fim conduz,

que entre os amores ja não lê um nome,

dizem – descansa! não perdeste a luz!”

[Estrofe do poema “O Sonho”]

“Por fim, sentado sobre uma pedra,

na mão descansa triste a cabeça:

aves sinistras piam ao longe,

da noite imersa na sombra espessa.”

[Estrofe do poema “Traição da Noite”]

O amigo refere aos presumíveis autores da música e sinto uma ressonância portuguesa nos nomes.

Nas aulas de Literatura Portuguesa referia a Soares de Passos (1826-1860) poeta português que nasceu no Porto e estudou em Coimbra. Os seus poemas foram publicados no ano de 1856 na Coletânea “Poesias”. É considerado um dos mais significativos poetas ultra-românticos lusitanos.

A sua composição mais conhecida, “O Noivado do Sepulcro”, chamava a atenção pelas evidentes semelhanças com a “morna” Perdão Emília. 

Alguns trechos do poema são elucidativos:

[…]

Saudosa ao longe vês no céu a lua?”

“Ó vejo sim… recordação fatal”

Foi à luz dela que jurei ser tua

Durante a vida, e na mansão final

[…]

E ao som dos pios co cantor funéreo,

E à luz da lua de sinistro alvor,

Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério

Foi celebrado, d’infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,

Já desse drama nada havia então,

Mais que uma tumba funeral vazia,

Quebrada a lousa por ignota mão.

[…]

Aprofundando a pesquisa, encontramos uma modinha brasileira do século XIX, intitulada “Perdão Emília” que terá sido a primeira modinha gravada no Brasil pela Casa Edison, em 1902.

Já tudo dorme, vem a noite em meio.

a turva lua surgindo além:

tudo é silêncio; só se vê na campa

piar o mocho no cruel desdém.

Depois, um vulto de roupagem preta,

no cemitério com vagar entrou.

Junto ao sepulcro, se curvando a medo,

com triste frase nesta voz falou:

“Perdão, Emília, se manchei-te a vida,

se fui impuro, fui cruel, ousado…

Perdão, Emília, se manchei teus lábios.

Perdão, Emília, para um desgraçado.”

“Monstro tirano, por que vens agora

lembrar-me as mágoas que por ti passei?

Lá nesse mundo em que vivi chorando,

desde o instante em que te vi e amei.

Chegou a hora de tomar vingança,

mas tu, ingrato, não terias perdão…

Deus não perdoa as tuas culpas todas,

Castigo justo tu terás, então.

Perdi as flores da capela virgem

Cedi ao crime, que perdão não tinha,

mas, tu, manchaste a minha vida honesta,

depois, zombaste da fraqueza minha…

Ai, quantas vezes, ao meus pés, curvado,

davas-me prova de teu puro amor.

Quando eu julgava que fosses um anjo,

não via fundo nesse olhar traidor.

Mas vês agora, que o corpo em terra

tombou, de chofre, sobre a lousa fria.”

E quando a hora despontou, na lousa

um corpo inerte a dormitar se via:

“Perdão, Emília, se manchei-te a vida,

se fui impuro, fui cruel, ousado…

Perdão, Emília, se manchei teus lábios.

Perdão, Emília, para um desgraçado”

A autoria é controversa e aproveitando-se disso, um ou outro cantor gravou a música com o seu nome. 

Há uma tese popular que diz que foi composta em 1875 por um português de Coimbra, José Henrique da Silva, que residiu durante muito tempo no Brasil. A melodia posterior é da autoria do também português Juca Pedaço. 

Partindo desse pressuposto, as influências ultra românticas de Soares de Passos ganham um fio condutor. Haverá intertexto do Noivado do Sepulcro em Perdão Emília? As alusões são evidentes, e o ultra romantismo fez escola em Coimbra. 

Para o Professor Carlos Reis, o conceito de intertextualidade teve sobretudo o mérito de eliminar do horizonte dos estudos literários a questão das influências e das fontes, que muitas vezes põe em causa a originalidade dos textos. A intertextualidade não só condiciona o uso do código, mas também está explicitamente presente ao nível do conteúdo formal da obra. Assim acontece com todos os textos que deixam transparecer a sua relação com outros textos: 

como a paródia, a imitação, o plágio, a montagem, entre outros.

A modinha deve ter chegado a Cabo Verde no início do século XX, na versão da Casa Edison ou por algum marinheiro e também nos finais dos anos 40 na versão de 1945 do cantor paulista Paraguassu (minha mãe confidenciou-me que já a minha avó cantava essa morna, portanto era conhecida antes da gravação do Paraguassu). Entrou no reportório das músicas tocadas, adaptada ao ritmo da morna e  com algumas deturpações na letra. É facto que nos anos 50, muitas músicas latino-americanas juntavam-se às músicas nacionais os ritmos da América Latina, trazidos por músicos destas paragens que ancoravam no Porto Grande. 

Entretanto…

…não há certezas que o percurso do “Perdão Emília” tenha sido Portugal – Brasil – Cabo Verde. 

Fado, Modinha e Morna fazem parte deste triângulo de vértices movediços nas anacronias do tempo.

MC canta o fado “Noivado do Sepulcro” de Soares de Passos.

“Perdão Emília” interpretada por Paraguassu.

“Perdão Emília” interpretada por Gilberto Alves.

“Perdão Emília” interpretada por Carla Lima.

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