“Terra bô sabê, “Bote, broç e linha”… e os números de hoje

Nelson Faria

Hoje dei por mim a escutar pela enésima vez esta música fantástica. E quando digo escutar, refiro‑me a escutar com o coração, permitir que cada acorde tenha a profundidade das palavras, deixar que a melodia crie imagens e sensações que vão muito além do simples ato de ouvir. É nessa dimensão, onde som e significado se entrelaçam, que a música revela toda a sua força e o seu poder inspirador.

“Terra bô sabê” mantém‑se surpreendentemente atual em vários aspetos… Particularmente na dignidade que invoca e não vem nos números propalados nos dias de hoje, pois, não somos números, somos pessoas e a vida de muitas pessoas tende a não ser tão digna quanto a fantasia criada à volta da leitura conveniente dos números que hoje se propala. Quantas vezes não nos deparamos com esta dissonância?

Celebram-se “dados macroeconómicos positivos” enquanto gerações enfrentam a precariedade laboral extrema, o trabalho sem direitos nem perspetivas. A música, um hino à terra cabo-verdiana e ao seu povo sofrido, mas resiliente, é construída sobre uma base de dor histórica, da fome, da seca, da luta das mulheres, da diáspora forçada, da vida dura do mar. Contudo, o que emerge desta narrativa de privação não é a resignação, mas, uma afirmação poderosa de identidade, pertença e, acima de tudo, dignidade inalienável.

“Terra bô sabê” é um grito de pertença, um testemunho de que, apesar de tudo, o valor intrínseco do povo, sua cultura e sua ligação à terra não podem ser apagados. É um ato de resistência contra a desumanização do nosso tempo.

Adoro números e estou totalmente à vontade para os ler em várias perspetivas. Todavia, hoje mais do que nunca, percebo que não me devo deixar cair na tirania da estatística, na ditadura do indicador quantitativo, em alguns casos questionáveis. Índices de pobreza, taxas de crescimento, taxas de desemprego que tentam criar um retrato “objetivo” da realidade social, mas não o fazem com integridade. Pois, no que se vive e no que se vê no contacto com as pessoas, o que os números não dizem, vemos o contrário, vemos a verdade, que não somos números, somos pessoas. E, de facto, as pessoas, com a sua complexidade, emoções e histórias, escapam à frieza das estatísticas e da leitura conveniente que se quer dar. A vida real das pessoas, com suas angústias, inseguranças e lutas diárias, tende a não ser tão digna quanto a fantasia criada à volta desses números.

A dignidade humana vai além, muito além, de estatísticas convenientes. Por isso, seria bom termos a lucidez de que ao medir “resultados” linearmente, “sem djobi pa lado”, corremos o risco de ignorar gente, de sacrificar vidas no altar da conveniência numérica. Quando políticas públicas, ou circunstâncias sociais, são desenhadas e comunicadas apenas a partir de modelos quantitativos que se quer propalar, perdem‑se nuances fundamentais ligadas a vivência singular de cada cidadão, a capacidade de resistência das comunidades, a urgência de proteger quem está à margem. É a dignidade pisoteada quando serviços essenciais como a saúde, a educação, a justiça, os transportes são avaliados por metas de eficiência que
ignoram o tempo humano, o cuidado, a atenção individualizada que cada pessoa merece.

A dignidade humana está no trabalho que dignifica, não que escraviza. Está no acesso garantido ao essencial para viver, não apenas sobreviver. Está no respeito incondicional pela pessoa, independentemente da sua utilidade momentânea para os índices de produtividade ou para as contas do Estado. A dignidade não é um luxo, é a base. A dignidade está no reconhecimento do outro como igual, no combate às desigualdades gritantes, na construção de uma sociedade onde ninguém seja reduzido a uma cifra, a um custo, a um obstáculo para um gráfico bonito.

Após mais uma audição desta pérola do Renato Cardoso, sinto renovado o compromisso de olhar o outro não como um dado a incluir em estatística, mas como alguém cujo valor jamais poderá ser medido a conveniência. “Terra bô sabê” é uma das nossas músicas que nos convida a colocar a dignidade humana no centro de todas as nossas leituras da realidade e do mundo que vivemos. Somos pessoas antes de sermos números, e a nossa história coletiva só se constrói de verdade quando reconhecemos esse princípio inalienável.

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