Tarrafal e o pecado original da República: como o partido único dividiu os cabo-verdianos

Por: David Leite

Junto a minha voz ao coro de homenagem a esses destemidos antifascistas portugueses e patriotas africanos, mas dou comigo a pensar (também) num outro Tarrafal, um Tarrafal III que poucos recordam e ninguém comemora! Aquele mesmo Tarrafal que em dezembro de 1974 reabriu os seus portões para, desta vez, receber os adeptos da UDC e da UPICV, ao todo 70 cabo-verdianos que ousavam pensar diferente do PAIGC recém-chegado da guerra na Guiné.

Estive há pouco a ver, em reposição, o espetáculo comemorativo do segundo encerramento do Tarrafal há 50 anos. Cânticos e coros ecoando nos ouvidos de políticos e presidentes naquele antigo presídio de sinistra memória, principalmente para os 340 antifascistas portugueses que lá deixaram sepultados 34 camaradas. A “colónia penal”, criada por decreto de Salazar em 1936, foi fechada em 1954, não por vontade do ditador, mas sob pressão internacional. As sevícias infligidas aos resistentes comunistas e anarquistas não retornaram com a reabertura do Tarrafal em 1962, agora com o nome de “campo de trabalho de Chão Bom” (do nome do pequeno povoado mais próximo) para encarcerar os nacionalistas destas ilhas (20), mas também de Angola (106) e Guiné-Bissau (100). Desses 226 reclusos, morreram 2 guineenses e 1 angolano (apesar dos rigores carcerais, observo alguma cautela em usar o termo “campo de concentração” nesta fase, para não exagerar).

Junto a minha voz ao coro de homenagem a esses destemidos antifascistas portugueses e patriotas africanos, mas dou comigo a pensar (também) num outro Tarrafal, um Tarrafal III que poucos recordam e ninguém comemora! Aquele mesmo Tarrafal que em dezembro de 1974 reabriu os seus portões para, desta vez, receber os adeptos da UDC e da UPICV, ao todo 70 cabo-verdianos que ousavam pensar diferente do PAIGC recém-chegado da guerra na Guiné.

Quem deu voz de prisão a esses prisioneiros da terceira vaga foram os militares portugueses estacionados no arquipélago. O PAIGC estribava-se no apoio incondicional do Movimento das Forças Armadas que, com pressa de fazer as malas, enviou um ultimato a Lisboa ameaçando entregar o poder ao Partido e abalar sem delongas para a metrópole. Este ultimato inequívoco foi o catalizador da independência, com a tropa portuguesa a prender os opositores do PAIGC… para “despachar”.

Ironia da História, o exército português era doravante o braço armado do PAIGC em Cabo Verde! Inimigos outrora, ei-los agora aliados ideológicos e tácticos na repressão e na imposição da “pensée unique”. A tomada de assalto da Rádio Barlavento, a 9 de dezembro de 74, soou como um adeus ao 25 de abril nestas ilhas, enquanto o PAIGC se autoproclamava “força política dirigente da sociedade e do Estado” na Guiné e em Cabo Verde. Já no advento da independência, o futuro partido único mostrava ao que vinha!

Estes são apenas alguns paradoxos da história da independência. O maior paradoxo desses conturbados tempos é este: enquanto filhos destas ilhas, cabo-verdianos com ideias diferentes mas não menos patriotas, eram encarcerados nas mesmas masmorras de Salazar, andávamos nós a gritar vivas à “unidade Guiné-Cabo Verde”! Levamos tempo a compreender até que ponto a propaganda do PAIGC nos embalava na ilusão de vivermos em Cabo Verde a luta de libertação que nos havia escapado na Guiné!

O pecado original da República de Cabo Verde foi ter nascido sob o signo de uma divisão que, embora sem guerra, poderia ter sido evitada através do diálogo e da concórdia nacional. Ainda hoje carregamos o peso – e os estigmas – dessa sina. Isto não é política – isto é História!

Mantenhas ao povo das ilhas na terra-longe e na terra-mãe.

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