Sónia Almeida
Na madrugada de 11 de Agosto, São Vicente viveu um dos episódios mais devastadores da sua história recente. Chuvas torrenciais arrastaram casas, soterraram veículos e destruíram infraestruturas frágeis, deixando um rasto de lama, esgotos a céu aberto e milhares de vidas profundamente afetadas. Passadas três semanas, a paisagem continua a mesma: ruas intransitáveis, crateras abertas, redes de esgoto e canalizações expostas, o odor nauseabundo que se alastra pela cidade como lembrete diário da vulnerabilidade da ilha.
Entretanto, o Primeiro-Ministro e o Presidente da República deslocaram-se prontamente a São Vicente, declarando solidariedade e anunciando fundos internacionais – entre os quais os disponibilizados pelo Banco Mundial – para apoiar a reconstrução. Contudo, três semanas depois, com excepção da mobilização comunitária e da solidariedade inter-ilhas (como a da Ilha do Sal ou Santo Antão), pouco ou nada foi feito de concreto. O contraste entre o anúncio solene e a ausência de resultados tangíveis levanta inevitáveis interrogações.
A questão dos fundos e da transparência
É imperativo perguntar: onde estão os fundos anunciados? Em que projetos foram alocados?
Qual a calendarização da sua execução?
Não basta anunciar a disponibilidade de verbas – é necessário publicar um plano de reconstrução da ilha, com a discriminação detalhada dos projetos a realizar, os valores a afetar e um calendário rigoroso de execução. Sem essa informação pública, não há como garantir transparência, nem exigir responsabilidades às instituições.
A literatura internacional é inequívoca: em contextos de calamidade, a transparência e a prestação de contas são condições indispensáveis para evitar a captura de recursos e garantir eficácia da resposta (Transparency International, 2020; Banco Mundial, 2019).
Vulnerabilidade estrutural e falta de planeamento
Os danos não resultaram apenas da intensidade das chuvas – fenómeno cada vez mais frequente devido às alterações climáticas (IPCC, 2023). Resultaram sobretudo da ausência de um planeamento urbano eficaz e da negligência sistemática na construção de infraestruturas de proteção: bairros inteiros sem muros de contenção, ruas de terra sem drenagem, canalizações frágeis expostas a cada intempérie.
O Relatório das Nações Unidas sobre Cidades Resilientes (UNDRR, 2022) sublinha que a prevenção é menos onerosa do que a reconstrução. No entanto, em São Vicente, o investimento em medidas preventivas foi adiado indefinidamente, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade que as chuvas de Agosto apenas expuseram com brutalidade.
Discriminação histórica: a outra tempestade
Nada disto pode ser visto isoladamente. Desde a independência, em 1975, São Vicente tem sido alvo de uma discriminação estrutural no contexto nacional. O atraso sistemático no investimento em infraestruturas básicas, a concentração de decisões políticas e económicas na capital, e o abandono de projetos estratégicos para a ilha alimentam uma percepção generalizada: a de que São Vicente vive sob uma nova forma de colonização interna.
O sentimento não é mero capricho. Basta percorrer as ruas destruídas, ver as casas destruídas, ou ouvir os comerciantes que há décadas clamam por condições mínimas de competitividade. A discriminação não é retórica: é quotidiana, material e humilhante.
O papel do Estado e da sociedade civil
Não se pode ignorar o esforço notável da população local: vizinhos que limparam ruas, voluntários que removeram lama, associações que organizam donativos. Mas a solidariedade popular, por mais valiosa que seja, não pode substituir a acção do Estado. A responsabilidade pela segurança urbana, pela construção de infrastruturas que incluem também muros de contenção, e pela modernização das redes de esgoto recai sobre as instituições públicas —municipais e nacionais.
Ao contrário, a resposta institucional tem sido marcada por lentidão, silêncio e falta de transparência. Sem um plano claro, publicado e acessível a todos, a confiança da população em relação ao poder público continuará a degradar-se.
De promessas à acção
São Vicente não pode continuar a viver de promessas. É urgente transformar os anúncios em acções concretas, com a publicação de um plano de reconstrução detalhado e transparente, incluindo valores e prazos. Caso contrário, a próxima chuva torrencial não será apenas mais uma tragédia anunciada: será a prova definitiva do falhanço de um modelo de governação que privilegia discursos sobre compromissos, em detrimento da vida concreta dos cidadãos.
Em última análise, não se trata apenas de reparar ruas e prédios. Trata-se de restaurar a confiança numa relação fundamental: a do povo com as suas instituições. Uma confiança que, em São Vicente, tem sido sistematicamente traída desde 1975.
Referências:
- Banco Mundial. (2019). Building Resilient Infrastructure for Sustainable Development. Washington: World Bank Group.
- Transparency International. (2020). Ensuring Integrity in Disaster Response. Berlin: TI.
- UNDRR. (2022). Making Cities Resilient 2030: Global Report. Geneva: United Nations.
- IPCC. (2023). Sixth Assessment Report: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Geneva: Intergovernmental Panel on Climate Change.
- Governo de Cabo Verde. (2018). Estratégia Nacional de Redução de Risco de Desastres 2018–2030. Praia: Proteção Civil.