Regionalização: Considerações sobre o processo legislativo em curso

Por José Lopes                                      

Desde que se iniciou a discussão no Parlamento cabo-verdiano da Regionalização prometi não escrever nenhum artigo sobre o tema, até à sua votação final. Infelizmente as circunstâncias determinaram que abrisse esta excepção. Com efeito, após a Aprovação na Generalidade da Lei de Regionalização apresentada em Novembro de 2018 pelo partido no poder, o MPD decidiu em finais de Março de 2019 agendar o seu debate na Especialidade. Apesar de se ter votado na Especialidade vários artigo da Proposta, o processo foi suspenso esperando reiniciar o debate durante o corrente mês de Abril.

A temática da Regionalização foi formalmente lançada em 2010, mas esteve sempre enraizada em Cabo Verde, determinada pelas suas características arquipelágicas, históricas e a evolução sociocultural das diferentes ilhas. Ela colocou-se com maior acuidade depois da independência, devido ao Centralismo instalado que, para além da sua génese ideológica, constituiu, sobretudo, para o país recém-independente um modelo de gestão de ajudas externas, o chamado modelo de reciclagem. O Centralismo, com a concentração de todos recursos alocados a Cabo Verde num pólo em torno da capital, Praia, operou uma transformação radical da sociedade cabo-verdiana, que até então vivia descentralizada nas suas ilhas, quando não emigrava para o exterior, e hoje terá que rumar à capital à procura de trabalho e futuro. A falência do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde, evidente a partir dos meados dos anos 80, expôs a nu o Centralismo, a sua matriz ideológica.

Nos anos 90, Cabo Verde abraçou o sistema democrático, mas as ilhas ditas periféricas, à cabeça S. Vicente que era, até 1974, a mais desenvolvida do ponto de vista humano e sociocultural, acreditaram que o novo regime traria um novo “élan” de desenvolvimento e perspectivas de futuro aos jovens das ilhas periféricas, mas o Centralismo piorou, respaldado na democracia dos números.

Apesar das vicissitudes do debate, a Regionalização acabou por ganhar espaço na opinião e mesmo ganhar terreno ideológico sobre o Centralismo, já que em 2016 o MpD, o maior partido da oposição que se tornou poder, aceitou integrar o conceito no seu Programa. Alguns acusam este partido de oportunismo político, mas, quanto a mim, foi um mérito perceber as virtudes potenciais da Regionalização para o actual estádio de desenvolvimento de Cabo Verde. O PAICV acabou por entrar no debate, tendo apresentado em 2018 uma contraproposta, que se aproxima muito do pensamento do Grupo de Reflexão da Diáspora, com a integração do conceito de Reformas.

Mesmo assim, o sistema centralista organizou uma autêntica resistência em surdina ao debate e a qualquer avanço do processo. O enorme atraso acumulado e os contratempos advêm dos condicionalismos criados pelas estruturas partidárias, estatais e sociais, bastante adversas ao processo. Ricardino Neves no seu último artigo de 23 de Março de 2019 enumera os diferentes bloqueios a que o debate foi alvo. Segundo ele “a comunicação social desempenhou um papel particularmente negativo. “Sendo na sua essência ‘Centralista’ de origem, com a maior parte dos órgãos públicos e privados originários e sediados na Capital, vimos desde logo muita hesitação no seu papel”.

Quanto a mim, ela organizou uma autêntica censura por omissão, tentando menosprezar a importância da questão. Mas a comunicação social estava a corresponder com a mesma frieza que o sistema político sempre teve em relação à questão. O tema criou clivagens, não foi bem aceite pela elite do regime centralista, que se sentiu ameaçada no seu conforto. Outro aspecto que Ricardino Neves realça é o “não-alinhamento” da sociedade civil. Segundo ele, “ela viu-se dividida na atitude a adoptar, com uma escolha delicada entre o seu habitual criticismo face ao poder e a afirmação da sua “autonomia” de “pensamento”.

Convenhamos que falar de sociedade civil em Cabo Verde, como um corpo de opiniões, em questões complexas de sociedade, como o que se debate hoje, é quanto a mim um exagero. Com efeito, o tema foi, a meu ver, insuficientemente debatido no seio da dita sociedade, os conceitos não foram minimamente explicados, tendo gerado muita confusão conceptual e dúvidas nas pessoas, entre a Regionalização Política e a Regionalização Administrativa, entre a Regionalização e Autonomia. Acresce que, num arquipélago fragmentado como Cabo Verde, cada ilha constitui uma microssociedade com a sua opinião pública, reflexo das suas idiossincrasias, o que complica ainda mais o problema.

O antagonismo entre os dois pólos de Cabo Verde, a ilha de Santiago e a ilha de S. Vicente, é nesse aspecto evidente. Ora, se lermos as propostas do MPD e do PAICV, podemos constatar que ambas acordam uma larga autonomia às regiões, excluindo é certo, e unicamente, a feitura de leis, embora podendo as regiões promulgar portarias, tal como fazem as câmaras hoje. É uma evidência que, no quadro da lei em debate, os governos regionais têm atribuições e latitudes políticas bastante alargadas. Por outro lado, mais ou menos Autonomia, como alguns reclamam pode ser obtida ou aprofundada com o tempo, no futuro, dentro no quadro da lei de Regionalização. Uma maior ou menor Autonomia dependerá, pois, unicamente da atitude da sociedade civil das ilhas, e eventualmente dos consensos políticos sobre a melhor forma de governar o país arquipélago.

Também tem-se confundido o modelo de Regionalização, o seu conceito, com o recorte administrativo das Regiões, o que é outro erro crasso que tem levado a discussões ambíguas. Na realidade, existiam duas propostas de Regionalização, logo dois modelos em cima da mesa, embora muito similares, o do partido do poder o MPD, que está em discussão na Especialidade, e o da oposição, o PAICV, que não mereceu atenção. Ambos propõem um recorte administrativo coincidente com a Ilha, daí a denominação de Ilha-Região, com excepção de Santiago que fica dividido em duas Regiões: Santiago Norte e Santiago Sul. O “modelo” Ilha-Região corresponde, pois, a um possível recorte administrativo da Regionalização e não propriamente um modelo de Regionalização, como muitos deixam entender. Existem várias possibilidades de recorte administrativo, uma delas poderá consistir no agrupamento de ilhas, como alguns defendem. Mais tarde qualquer “modelo” aprovado poderá migrar para soluções mais interessantes e contemplar outros recortes.

É um facto que os que são contra a Ilha-Região apontam os perigos reais de, efectivamente, com duas regiões, se inflacionar ainda mais as verbas que são destinadas a Santiago, ela que já concentra mais de 80% do OE, assim como a maior parte dos investimentos e projectos. Acresce que paira em cima do processo uma outra nuvem cinzenta, o inaceitável e muito criticado Estatuto Especial para Praia, que na prática corresponde a uma 3ª região encapotada, atribuída a Santiago: se este Estatuto for aprovado, a Praia torna-se oficialmente num autêntico Estado no próprio Estado, oficializando assim uma situação que existia informalmente.

Mas, como tenho afirmado, com ou sem Regionalização, se as ilhas, a sociedade civil, não reclamarem, mas também se não houver mais ética e equidade na administração do arquipélago, a distribuição dos recursos será feita sempre tendo em conta as regras e os interesses do Centro, que hoje se proclama e reclama de maioria sociológica. Portanto, não será por causa da atribuição de duas regiões a Santiago que se vai inviabilizar a descentralização de Cabo Verde, uma ideia que deveria ultrapassar os cálculos e focar-se nos interesses e ganhos de longo prazo.

Em 2017 tive acesso à Pré-Proposta de Lei de Regionalização do MPD no âmbito da associação GRRCV (Grupo de Reflexão da Regionalização de Cabo Verde) sediada em Mindelo. Após a sua leitura integral, apesar das minhas reticências, que se prendiam com a necessidade de se criarem condições para que a Regionalização fosse um sucesso, não exprimi nenhuma opinião que pudesse ser encarada como oposição à Proposta. Com efeito, defendi sempre que a Regionalização exigia Reformas necessárias e indispensáveis, os alicerces e as estruturas de todo o edifício político (ver referência (1), Propostas Reformistas para uma melhor Regionalização de Cabo Verde, assim como referência (2), tanto a nível central como local: o novo poder regional, não poderia ser concebido como peça isolada do puzzle, sob pena de dificuldades e problemas com o seu encaixamento no conjunto.

A Regionalização deveria quanto a mim implicar o redimensionamento de todo o Estado central e da administração pública, de modo a permitir a inclusão da nova estrutura de poder. Obviamente, estas tarefas, pelas suas complexidades e pelas suas demandas, só podem ser levadas a cabo com um faseamento no tempo, após terem-se definido claramente objectivos e metas. Portanto, mesmo não se chegando, hoje, a um consenso sobre as Reformas, este facto, a meu ver, não deverá impedir a votação da Regionalização, desde que haja um compromisso de se contemplar a abertura às Reformas. Pois é, esta questão tornou-se tão importante, a tal ponto que soube que, durante o debate da Especialidade, o PAICV apresentou desgarradamente a proposta de se suprimir pura e simplesmente o Município de S. Vicente, quando é a ilha de Santiago que colecciona dezenas de municípios, artificialmente criados: ora, a ilha de S. Vicente bem podia comportar, hoje, mais uma câmara, tendo em consideração o crescimento da cidade e o desenvolvimento urbano da ilha. Por isso, considerei a proposta absurda, uma ideia peregrina, já que a Região nunca pode ser confundida com uma Autarquia, um erro de perspectiva que deriva da terminologia Supramunicipal, muito em voga e contida nas propostas dos dois partidos. A Região deve, pois, ser encarada como uma estrutura intermédia, entre o poder central e o poder autárquico. Por isso suprimir o Município de S. Vicente constituiria pura e simplesmente numa troca de Câmara por Região, o que seria no mínimo um logro, uma traição à ilha da Regionalização, para além de constituir um tremendo erro político. Não é assim que o PAICV evidenciará as suas veleidades reformistas.

Por fim, dois factos preocupantes vieram ensombrar o debate na Especialidade: primeiro, o da Comissão Paritária Parlamentar que foi criada em 2018 para analisar o diploma antes da sua submissão na Especialidade, nunca ter funcionado; o segundo, o das acusações mútuas de que nenhum  dos partidos estaria verdadeiramente interessado na aprovação da Regionalização. 

É, pois, importante salvaguardar que o sistema político não tranque a lei da Regionalização que vier a ser aprovada, de modo a permitir um acompanhamento flexível do processo, e que as Reformas necessárias possam ir sendo continuamente incorporadas. Também deverá ser suficientemente flexível de modo a permitir a possibilidade da  evolução futura do modelo Ilha-Região para um outro (por exemplo o agrupamento de ilhas/regiões) ou mesmo para uma ampla Autonomia, como alguns reclamam.

Sair da versão mobile