Quando a História é usada a serviço da conveniência- Desconstruindo o discurso do deputado Celso Ribeiro

Any Delgado

Em tempos de incerteza política e fragilidade institucional, torna-se tentador para alguns usar o passado como arma. Foi exatamente o que vimos quando o deputado Celso Ribeiro, do MpD, afirmou que o Estado devia pedir desculpas ao povo cabo-verdiano pelos alegados abusos cometidos durante o regime de partido único.

À primeira vista, a declaração pode parecer nobre e um apelo à justiça histórica. Mas, com uma análise mais cuidadosa, percebe-se que esse discurso é menos sobre justiça e mais sobre oportunismo político.

Já cansa ouvir constantemente a lenga-lenga de responsabilizar o PAICV por um passado que, convenhamos, pertence à construção coletiva de um Estado recém-independente, num contexto internacional adverso, ainda marcado pelas cicatrizes do colonialismo e pela Guerra Fria. O que torna essa narrativa particularmente hipócrita é o silêncio cúmplice sobre o facto de que muitos dos protagonistas desse “regime de excepção”, HOJE integram ou integraram os quadros dirigentes do próprio MpD.

Ulisses Correia e Silva, atual Primeiro-ministro, foi Secretário de Estado das Finanças em meados dos anos 1990, num Governo que ainda transportava os resquícios da estrutura do partido único. Carlos Veiga, figura de proa da transição democrática, foi membro do PAIGC antes de fundar o MpD. Outros nomes, como José Tomás Veiga, António do Rosário ou Úlpio Fernandes, exerceram funções de alto relevo ainda sob a lógica unipartidária e depois vestiram a camisa do novo regime sem nunca renegarem ou se retratarem pelas decisões de que foram CÚMPLICES. É, portanto, profundamente incoerente exigir hoje um pedido de desculpas institucional, omitindo a participação direta de tantos desses mesmos dirigentes na governação que agora se condena.

A pergunta impõe-se com franqueza: QUEM, exatamente, deve pedir desculpas? O partido? O Estado? Ou aqueles indivíduos que, de facto, tinham nas mãos o poder e a caneta? O discurso do deputado do MpD perde toda a sua credibilidade quando os acusadores de ontem são os governantes de hoje. A história não pode ser reescrita à conveniência das estratégias eleitorais. E muito menos pode ser instrumentalizada para denegrir seletivamente um adversário político.

Em vez de uma abordagem ética e abrangente sobre o passado, o que se observa é uma tentativa de santificação do MpD à custa da criminalização unilateral do PAICV, como se a transição para a democracia fosse um ato de purificação absoluta e não, como de facto foi, um processo complexo, com continuidades e rutura.

Basta olhar para a experiência portuguesa, país cuja ditadura durou mais de 40 anos. Nem Salazar nem Caetano foram levados à justiça e o regime do Estado Novo nunca pediu desculpas formais aos portugueses pelos seus crimes. A transição foi feita com pragmatismo e contenção, sem caça às bruxas nem uso partidário do passado.

Embora Portugal tenha reconhecido formalmente episódios como o massacre de Wiriyamu em Moçambique, através de pedidos simbólicos de perdão a vítimas específicas, jamais se utilizou esse passado como trunfo para queimar os partidos da direita que nasceram da mesma estrutura do regime deposto. Porque havia, pelo menos, um entendimento tácito de que a reconciliação nacional só pode ser feita quando todos assumem o seu papel na história, sem exclusões seletivas.

Cabo Verde precisa desse mesmo sentido de maturidade. Não se nega que o regime de partido único cometeu erros, excessos e decisões duras. Mas foi também um período em que se construiu o alicerce da nossa soberania, da nossa diplomacia, do nosso sistema educativo, e da identidade nacional que hoje tanto orgulha o país.

Pedir desculpas por esse período sem reconhecer os seus contextos e sem incluir todos os seus responsáveis, estejam hoje em que partido estiverem, é deturpar a memória coletiva e manipular a História ao serviço de agendas partidárias. A verdadeira reconciliação não se faz com discursos manipulados, mas com verdade, memória íntegra e responsabilidade partilhada. Se queremos que o passado nos ensine não o podemos falsificar.

E, se vamos pedir desculpas, que sejam todos os responsáveis a pedi-las, e não apenas aqueles que, por conveniência política, se tornaram o bode expiatório de uma história muito mais complexa do que certos discursos simplificadores ousam admitir.

Sejam honestos!

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