Prosa Desperdiçada

José Pedro Fonseca*

“Hoje vou escrever umas linhas acerca desta nossa ilha de São Vicente, dos seus problemas, mas numa perspetiva construtiva, sem acusar ninguém nem tentar encontrar culpados nem responsáveis. Vou tentar, isso sim, encontrar soluções. Soluções de problemas que nos tocam a todos. Penso que andamos há muito tempo envoltos com os problemas e com isso nos consumimos e nunca chegamos às verdadeiras soluções.

Cabo Verde conheceu dois grandes períodos da sua história geral, o monárquico e o republicano. Em ambos houve períodos de democracia e liberdade de expressão. Também, já na nossa era, se distinguem dois períodos em termos de liberdade de expressão, um que começa com o golpe militar de Gomes da Costa em Lisboa no ano de 1926 e que leva Salazar ao poder e o segundo que começa com o 25 de abril, também em Lisboa.

Isto tudo para dizer que o povo cabo-verdiano sempre viveu manietado da liberdade de expressão por força da PIDE ou por força da inexistente ou fraca ligação marítima interilhas, e as cartas levavam semanas para chegar ao seu destino, ou meses se se tratasse da diáspora. Com o 25 de Abril acreditou-se que essa tão almejada liberdade chegara, mas logo nos apercebemos que era uma ilusão e que partido único impunha uma nova forma de censura, agora a “revolucionária”.

Finalmente a democracia chega com Carlos Veiga e há uma primeira vaga de liberdade de expressão nas rádios, jornais e televisões.  Mas jamais se viu uma tão grande explosão da liberdade de expressão e comunicação como com o advento das redes sociais, no início do século 21.

Será que esta poderosíssima ferramenta que é a Internet nos está e servir bem ou nos está a dividir? Será que a energia intelectual que colocamos nas redes sociais nos está a ser benéfica ou prejudicial? Quando digo nos está, refiro-me à comunidade e, em última instância, ao desenvolvimento nacional.

Senão vejamos: há 35 anos que temos eleições e já tivemos, nesse período, umas oito vezes. Contam-se pelos dedos das mãos as vezes em que assistimos a campanhas eleitorais mais ou menos quezilentas, mas, regra geral, existe sempre um padrão em comum. Salta à vista que sempre existe uma equipa bem treinada e municiada pela oposição e cujo papel é publicar nas redes sociais uma série de insultos, impropérios e suposições de crimes praticados pelo poder, tais como, recebimento de vantagem, tráfico de influências, descaso do interesse público, corrupção, etc., etc. … etc.

Não podemos estranhar porque é assim em todo o lado. Mas temos de reconhecer que as nossas campanhas nas redes sociais são feitas por especialistas bem instruídos em enumerar e descobrir problemas sem jamais apresentar uma solução sequer. Se o partido que estava na oposição salta para o poder, já sabemos que vai cometer, grosso modo, os mesmos erros e desmandos que o governo anterior e que na próxima campanha tudo se repete e as redes sociais serão inundadas pelo mesmo tipo de insultos e impropérios, destinados a denegrir o trabalho do poder.

Será que o criativo cabo-verdiano vai assim continuar num “loop” inútil de produção literária e de usufruto da liberdade de expressão sem grandes resultados? No fundo criaram-se duas cliques que alternam no poder e, cada vez que lá estão, distribuem umas migalhas por um conjunto de vassalos, iludidos por falsas promessas de cargos ou outro tipo de vantagens. Até parece que já nos conformamos com este estado de coisas.

E se todos trabalhássemos para o desenvolvimento nacional sem que metade do país engorde enquanto a outra metade emagrece? E se encontrássemos uma forma de encostar os nossos governantes à parede ao apresentarmos os problemas, apontarmos o dedo aos culpados e incompetentes e apresentarmos as soluções? Um exemplo: todos os partidos já prometeram um aeroporto para Santo Antão. Mas algum apresentou a solução técnica para esse aeroporto? Claro que não, porque isso não é ainda possível com o atual estado da arte da indústria aeronáutica.

Para não cansar o leitor vou então apresentar aqui um problema que já existe há mais de 10 anos no coração do Mindelo e que agravou muito após a tempestade Erin. Não poderia deixar de apresentar aqui um conjunto de soluções.

O problema tem a ver com um terreno abandonado na zona de Torrada, encostado à Central de negócios da empresa COPA SA. Esse terreno, de terra batida, lama seca e areia, serve de parque de camiões e de zona de desova de contentores. Não é esse o problema. O problema é a terra que, ao menor vento se levanta e atinge tudo à sua volta, incluindo uma padaria mesmo em frente.

As ruas que ladeiam esse terreno são muito frequentadas pelas populações de Fernando Pau, Craquinha, Monte Sossego, Ribeira Bote, enfim é um dos mais importantes nós de tráfego humano da cidade.  Acresce que nas redondezas existe a escola Humberto Duarte Fonseca, a escola José Augusto Pinto e o Liceu Ludgero Lima e instalações desportivas onde se concentra a grande parte da juventude da cidade, 365 dias por ano.

A foto de satélite mostra o terreno de onde partem duas setas que representam a direção do vento predominante. Este terreno, aparentemente, pertence à empresa Bento Lima e nunca serviu os propósitos   que a Câmara lhe destinou.

Ele funciona, isso sim, como uma fonte de poeiras de vários tamanhos pois a mais grossa deposita-se nas redondezas e invade as casas e residências da vizinhança, sendo uma dor de cabeça para as donas de casa e empregadas domésticas. As mais finas são levadas pelos ventos a grandes distâncias indo depositar-se nas escolas e equipamentos desportivos, para além das casas da zona sul de Monte Sossego até ao Campim e Dja d´Sal.

As padarias, minimercados e lojas do topo da rua 1 não escapam a este flagelo.

Após a tempestade Erin a população da Torrada tem convivido com esgotos a céu aberto com muita frequência, como se pode ver na fotografia, feita ontem. Cada vez que um automóvel ou camião passa no local levanta uma fina poeira carregada de bactérias de esgoto e o vento encarrega-se de a depositar nos pulmões dos moradores, dos estudantes e atletas da zona.

Esta questão é muitíssimo séria pois tem a ver com a saúde dos munícipes e com os custos suportados pela população e pelo estado em medicamentos e hospitais. As infeções respiratórias são o pão nosso de cada dia nas zonas afetadas.

Este problema das bactérias do esgoto existe em todos os bairros da cidade onde a lama trazida nas enxurradas de agosto se depositou, misturou com as águas de esgoto e depois secou.

As camadas superficiais da lama agora seca foram esterilizadas pela radiação ultravioleta solar. O problema é que as bactérias se mantêm ativas nas camadas mais abaixo, onde a luz solar não chega. Os veículos automóveis, ao passar por cima da lama seca libertam essa camada com bactérias vivas e o vento leva-as para longe.

Temos então um problema de saúde pública em mãos, é um facto. E soluções?

Parte da solução terá de ser a empresa Bento Lima/Forrador, proprietário do terreno, e a Câmara Municipal.

Bento Lima foi um conhecido empresário de Mindelo, Cabo Verde, notável por ter o Bar Lima na Rua Matijim, um ponto de encontro e parte da memória local, e por ser a figura por trás da BENTO, S.A., uma importante empresa de importação e comércio geral, com foco em alimentos, bebidas e produtos de higiene, representando a continuidade do negócio familiar, com seu representante atual sendo José António Lima. A Bento Forrador é uma empresa gémea que se dedica ao transporte de cargas pesadas e à construção civil.

Os empresários cabo-verdianos são também mecenas das artes, do desporto e da cultura e a Bento SA não foge à regra. Será do seu interesse fazer uma boa ação ao povo de São Vicente acabando com um flagelo municipal.

Coincidentemente a Bento Lima tem os meios e as máquinas pesadas e a Câmara tem os ainda frescos financiamentos para a os estragos da tempestade, vamos pôr as mãos à obra.

Queremos uma parceria entre o dono do terreno e a CMSV e queremos que sejam colocadas umas carradas de jorra no local, esta seja devidamente espalhada sobre a terra solta e depois cilindrada para fazer um piso firme que absorva bem as chuvas e não crie lama nem terra nem poeira. Problema resolvido.

Claro que a Bento Lima/Forrador pode ir ainda mais longe e autorizar a Câmara a fazer um parque infantil / pista de skate nesse terreiro, deixando o resto para as atuais atividades dos camionistas e de desova de contentores, podendo até construir uma casa-de-banho para esses trabalhadores, que ali permanecem em condições desumanas.

Afinal somos ou não um país de desenvolvimento médio.

Fico por aqui, esperando que as forças vivas de São Vicente ajam em nome da saúde e do bem-estar deste povo.

*Professor de Mecânica dos Fluidos – UniMindelo

Mindelo, 18 de dezembro de 2025

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