O valor da moeda

José Manuel Araújo

Será a política partidária também um negócio disfarçado por requintes de demagogia em que as empresas são os partidos e os acionistas os militantes? Trocam-se bens, interesses, favores, benesses e até “promessas”. Falamos do negócio da Regionalização de Cabo Verde e do Estatuto Especial para Praia, convenientemente eternizados entre os dois maiores partidos.

Do modo como tem sido feito, o seu anúncio e tratamento têm reiteradamente atropelado a honestidade que se espera de assuntos de tamanha natureza e responsabilidade, pois, no respeitante ao valor de troca entre ambos, insiste-se em subentender de forma abusiva e objetivamente oportunista um negócio de interesses e benefícios igualmente exclusivos para Praia e S. Vicente. E isso é efetivamente pouco sério.

Se para o negócio do Estatuto Especial se lança reiteradamente ao ar a ideia dos custos da capitalidade, ao mesmo tempo que se esconde os benefícios da capitalidade no contexto da Nação; Se o Estatuto Especial é um negócio de exclusivo benefício para Praia, ao legalizar e legitimar o desequilíbrio no país a favor da Capital; já a Regionalização visa o bem geral para todo o país e não exclusivamente para S. Vicente, como os debates centralistas e centralizados apostam sempre em fazer crer.

Inclusivamente, a natureza abrangente e integradora da Regionalização teria a virtude de fazer esvanecer qualquer necessidade de reivindicação de Estatuto Especial ao retirar poder e revelar a inconsistência dos argumentos em defesa dessa vontade.

Entretanto, prefere-se fingir não ver essa verdade simples e cristalina e continuar a insistir na equiparação forçada do valor entre as duas proposições, para assim se conseguir credibilizar a seguinte proposta de negócio: “Como pagamento pelo teu voto para aprovação do meu projeto do Estatuto Especial para Praia eu te dou em troca o meu voto para aprovação do teu projeto de Regionalização”. Só não dizendo que uma tal proposta esconde que, mesmo regionalizando o país, o Estatuto Especial para Praia iria promover ainda mais o agravamento do centralismo e dos desequilíbrios já existentes em Cabo Verde.

Ao assumirem assim essa função de meio de pagamento, caprichosamente, ambas as pretensões passam a ser tratadas, não como perspetivas diferentes sobre a organização do Estado e subsequente visão de desenvolvimento do país, mas sim, e tout court, como moedas de troca para servirem interesses exclusivos de Santiago e supostamente de S. Vicente também.

E é no contexto deste novo significado, assim ardilosamente criado e impingido ao povo cabo-verdiano, que se conseguiu valorizar de forma tão vertiginosa a moeda Estatuto Especial, equiparando-a ao valor natural da Regionalização, de modo tal que hoje quase confrange qualquer pretensão de rejeitar um negócio exclusivamente a favor dos interesses da Praia em benefício dum negócio a favor dos interesses da coletividade cabo-verdiana, porque supostamente será também visto como um negócio exclusivamente a favor dos interesses da S. Vicente.

À envenenada promessa de Regionalização apelidada de – “regionalização para S. Vicente” – em vez de Regionalização para Cabo-Verde, seguia-se um simulacro de interesse geral do MpD e do PAICV em efetivar aquele projeto de regionalização do país, porém já bem armadilhado com suficiente mestria capaz de o inviabilizar logo à nascença sem que, entretanto, ninguém figurasse como responsável pelo seu insucesso.

 E foi assim que, do grande esforço e interesse na viabilização do projeto de Regionalização exibido por esses dois partidos, nada se produziu e ainda de bónus cada um pode sacudir o capote para cima do outro.

Portanto, para nós da plateia, fica que, não tendo havido má vontade na viabilização do projeto de Regionalização, o outro projeto, o de troca referente ao Estatuto Especial para Praia, legitimamente deve manter-se de pé. E, se continua de pé, já agora, e por uma questão de garantia de segurança, porque não valorizá-lo até o ponto de irreversibilidade? Logo, um tratamento claramente privilegiado e desigual comparativamente àquele proporcionado ao projeto de Regionalização que foi ao Parlamento já com dias contados.

A oportunista sobrevalorização da moeda – Estatuto Especial – é conseguida precisamente através da imposição do receio da ameaça da imagem de ingratidão que paira sobre aqueles por quem, supostamente, tudo se fez para almejarem a sua tão desejada Regionalização, incrementada cirurgicamente pelo momento escolhido para a sua entrega no Parlamento, isto é, “véspera das eleições”. Naquele momento, todos os deputados já se encontravam ingenuamente amarrados quais bezerros ao seu partido, por um nó chamado “medo de perder votos”.

Primeiro criou-se uma linguagem que colocou a Regionalização e o Estatuto Especial num falso mesmo saco e num falso mesmo patamar de interesse para a Nação. Porém, paradoxalmente, e de forma oportunista, procurou-se ao mesmo tempo fazer passar a ideia em como cada um deles se destinasse a beneficiar respetivamente uma ilha, Santiago ou S. Vicente, transformando astuciosamente o assunto numa luta de interesse individualista e bairrista entre as duas ilhas, uma condição que à partida serviria para perturbar o entendimento da real finalidade de uma e de outra, por parte das restantes ilhas que também têm a sua palavra a dizer sobre estes temas. De seguida tratou-se de credibilizar pela via da centralização discursiva de mensagem única em benefício da imagem do Estatuto Especial e em prejuízo da imagem da Regionalização. E, por fim, foram subtilmente travestidos em duas moedas de troca onde o Estatuto Especial já granjeara maior peso. Portanto, uma clara subversão da realidade e da verdade.

E quer queiramos quer não, para abalar a firmeza de posição daqueles que lá no seu íntimo são contra esse Estatuto Especial para Praia, estão todas as grandes promessas feitas a S. Vicente, tal como a ZEEMSV para ser concluída em 15 anos, mas que, passados 9 anos, ainda nem se viu o lançamento da primeira vontade por parte do Governo. S. Vicente irá ter a coragem de negar um projeto de Estatuto Especial a um governo tão “generoso” para com a ilha?

Avisado deveria estar o mindelense, seja ele o cidadão comum, o funcionário público, o homem de negócios, o deputado ou o simples militante partidário, para que, de uma vez por todas, deixe de experimentar esse complexo pelo qual se deixou assombrar enquanto consequência imediata do sufocante centralismo iniciado logo após a independência, essa sensação de peso na consciência quando luta pelo interesse geral da Nação e/ou honestamente pela sua ilha pois, apesar da permanente insistência com o assunto do Estatuto Especial assente na máxima de que uma mentira repetida várias vezes se transforma numa verdade, apesar da engenhosidade na tentativa da arregimentação das restantes ilhas no alinhamento à sua pretensão de isolar, descredibilizar e fragilizar S. Vicente por via não só de jogos de intriga, medidas e discursos de sedução que simultaneamente apoucam a ilha de S.Vicente em todas as esferas imagináveis – desde as suas capacidades historicamente demonstradas, as suas potencialidades comprovadas, a sua dignidade e civilidade quase irrepreensíveis enquanto comunidade, mas também através de toda a fumaça lançada no ventilador do debate para impedir que se possa distinguir o essencial do embuste na propaganda do estatuto especial para Praia, tudo para lhe atribuir um valor que não tem, desde que pareça um valor com o mesmo ou maior nível da regionalização.

Tudo falso, habilmente manipulado e conseguido em grande medida pela via da chantagem psicológica, emocional e moral do povo cabo-verdiano usando a centralização da comunicação, particularmente pelos órgãos de Comunicação Social do Estado, onde, fogosa e militantemente, a TCV assume protagonismo quase total.

                                                                       

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