O mistério etimológico da palavra religião

As religiões são caminhos diferentes convergindo para o mesmo ponto. Que importância faz se seguimos por caminhos diferentes, desde que alcancemos o mesmo objetivo? [Mahatma Gandhi]

Por Arlindo Nascimento Rocha*

Muitas religiões têm narrativas, símbolos, tradições e histórias sagradas que se destinam a dar sentido à vida ou explicar a origem do homem e do universo. Porém, não há consenso na definição do termo. Algumas definições clássicas devem ser mencionadas, pelo seu valor histórico e formador do campo semântico coberto pelo termo religião. Religião, do latim religare, de significado especulativo, segundo Ferreira, é um conjunto de sistemas culturais, de crenças e visão de mundo que estabelece os símbolos que relacionam a humanidade com a espiritualidade e seus valores morais.

Mas, segundo Klaus Hock, historicamente foram propostas várias etimologias para o termo religião: Cícero (106-43 a.C.), em sua obra De natura deorum, afirma que o termo religio refere-se a relegere, reler, sendo caraterístico das pessoas religiosas que prestarem muita atenção a tudo que se relacionava com os deuses relendo as Escrituras; mais tarde Lactâncio (séc. III-IV d,C.) rejeita a interpretação de Cícero e afirma que o termo religare, religar, argumentando que, a religião é um laço de piedade que serve para religar os seres humanos a Deus; no livro A cidade de Deus, Agostinho de Hipona (séc. IV d.C.) afirma que religio, deriva de religare, “reeleger”, pois, através da religião, a humanidade liga-se de novo a Deus do qual separou.

Mais tarde, em obra De vera religione, ele retoma a interpretação de Lactâncio que via em religio uma relação com religar; recentemente foi proposta uma terceira variante: derivar religio de rem ligare, ‘amarrar a coisa’, no sentido de descansar das inquietudes. Quem representa uma síntese perfeita entre Cicero, Lactâncio e Santo Agostinho segundo Grondin, é Tomás de Aquino. Para isso, ele desenvolve três etimologias que ele julga essencias para a compreensão da religião: a) reler (Cícero), o ser humano religioso é aquele que relê o que concerne ao culto divino; b) re-eleger (Agostinho), pois, Deus é o Bem supremo que foi abandonado pelo homem, por isso, devemos re-elegê-lo de novo; c) religar (Lactâncio), a religião exprime a ligação com o Deus único e todo-poderoso.

O debate sobre a derivação certa do termo religião mostra que a definição do termo não é possível nos moldes de uma definição objetiva, ou seja, ‘dada’, mas permanece vinculada a um contexto histórico-cultural específico. Com a Reforma, a religião tornou-se um termo que desempenha uma função crítica: contra a ‘superstição’ e a ‘magia’, mas também contra a atuação cúltica da Igreja Católica Romana em seus serviços divinos que, aos olhos dos reformadores era errada. No Iluminismo a religião aparece como um ‘todo’ ideal que está presente nas religiões somente na forma truncada e insuficiente. A religião em si é tirada da competência da crítica da religião, já que sem forma ela não pode ser verificada em nenhuma realidade existente. 

De lá para cá as coisas não mudaram muito. Vários pensadores (antropólogos, filólogos, sociólogos, psicanalistas, filósofos) sob perspectivas diferentes continuaram refletindo sobre o tema, ou seja, sobre sua origem e importância que ela desempenha na vida das pessoas, seja em questões espirituais ou práticas do homem inserido na sociedade. Assim, no final do séc. XIX o antropólogo Edward Tylor (1832-1917) define religião, como a crença em seres espirituais; o filólogo e pai da Ciência da Religião Max Müller (1823-1900), afirma que a religião é a habilidade de experimentar o infinito no finito; para o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) a religião é um conjunto de práticas e representações revestidas de caráter sagrado. Segundo ele, a religião também pode ser definida como, um sistema solidário de crenças e práticas relativo às entidades sacras, quer dizer, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem em uma mesma comunidade moral, chamada de Igreja, a todos que aderem a ela.

Para o antropólogo Bronisław Malinowski (1884-1942), a religião ajuda as pessoas a suportarem situações de pressão emocional abrindo fuga a tais situações e tais impasses que nenhum outro caminho empírico abriria, exceto através do ritual e da crença no domínio do sobrenatural. Ainda segundo Malinowski (1988), em tudo a religião contraria as forças centrifugas do medo, da dor, da desmoralização e proporciona o meio poderoso de integração da abalada solidariedade do grupo e de restabelecimento da sua moral. Em breves palavras, religião garante a vitória da tradição e da cultura sobre as reações negativas do instinto perturbado.

O psicanalista Erik Erikson (1902-1994) define a religião em seu estudo sobre Lutero como uma forma de tradução em palavras, imagens e códigos significativos do excesso de obscuridade que envolve a existência humana; e, para Byrne, um estudioso dedicado a analisar e criticar definições de religião propõe uma definição em uma vertente moral. Segundo ele, uma religião é um sistema simbólico que articula o pensamento de que há uma fonte de moral por trás do mundo, e que o pensamento de que os reinos dos valores e dos fatos estão em última análise unidos.

Mas, a definição de religião do antropólogo Clifford Geertz (1926-2006) é de extrema importância, pois, sua definição é apontada por muitos estudiosos como sendo a definição (ainda que muitos a critiquem), que facilita as ideias modernas de tolerância e diálogo entre as religiões hoje existentes. Segundo ele, a religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral, e vestindo essas concepções com tal aura de factualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.

Como se pode ver através da leitura atenta da definição de Geertz, ela contemplada algumas caraterísticas básicas das religiões (símbolos, valores, normas, crença em divindades, submetendo-se aí, mitos e rituais). Com isso, acaba sendo a perspectiva sobre o tema que fornece elementos à visão dominante no ocidente, nos meios de comunicação, nas escolas e mesmo na educação familiar. 

Devemos estar conscientes do fato de que ‘religião’ tanto no que se refere à definição de seu conteúdo como a respeito das suas funções, está atualmente submetida a rápidas mudanças e profundas transformações: religião, política, esporte como religião, religião na cultura popular, religião e meios de comunicação, nova religiosidade, New Age etc., seriam alguns tópicos que indicam esse tipo de transformação. Essas mudanças e rupturas poderiam nos obrigar a procurar por um novo sentido para o termo religião que reflita de modo adequado a situação transformada.

Do ponto de vista filosófico encontramos ao longo da história pensadores que refletem sobre o conceito de religião, não tendo como objeto sua origem etimológica, mas, a natureza de sua origem. Assim, identifica-se a origem naturalista em Epicuro (341 a.C – 270 a. C); a psicológica em Freud (1856-1939) e a social em Durkheim (1858-1917).

Para Epicuro, o facto de o homem não conhecer devidamente a natureza nem conseguir controlar um grande número de fenômenos naturais, leva-o a acreditar na existência de seres que tudo sabem e tudo podem fazer em seu próprio proveito. Para Freud a religião nasce do facto do homem não conseguir dominar a imensa complexidade de forças contrastantes que atuam dentro de si mesmo e é naturalmente levado a convencer-se da existência de um ser todo poderoso, cujo poder se faz sentir dentro de si mesmo, para que se coloque em tudo na sua dependência. E, finalmente, para Durkheim, a sociedade contém todos os ingredientes para fazer despertar nos seus membros o sentido do divino. A sociedade é um ‘grande pai’, que impõe a sua vontade a todos os ‘filhos’ e tudo dirige para manter a sua autoridade sobre a vontade dos indivíduos. Com base na predisposição para a obediência, assim gerada entre os seus membros, a sociedade tudo faz para canalizar este estado de espírito em proveito da sua estabilidade.

Já o teólogo e filósofo Giordano Bruno (1548-1600) e o historiador, poeta, diplomata Maquiavel (469-1527) defendiam que a religião em si mesma representa a forma espontânea de vida em sociedade por parte do povo simples e constitui a mais lídima expressão do seu desejo de justiça, do seu amor à liberdade e da sua adesão espontânea aos bons costumes. Segundo o filósofo Alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), a religião não é mais do que uma manifestação do homem enquanto tal, cuja dimensão e poder ultrapassam em muito as dimensões concretas e capacidades próprias de cada indivíduo em particular. Para o filósofo Alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), a religião é uma expressão natural e intrínseca ao homem, reflexo dum ‘poder de ser’, que o habita e ultrapassa tudo quanto na sua existência, pelas práticas habituais, é posto em ação. A religião situa-se ao nível de uma experiência do incomensurável, que penetra o mais profundo do ser humano.

Como se pode ver a palavra religião é um mistério, pois, ela é multifacetada e vem sendo decifrada e moldada ao longo dos tempos, e, dependendo da época e da perspectiva em que se colocam os vários pensadores citados, temos igualmente uma definição ou visão diferente do que seja a religião.

Rio de Janeiro, 14/08/2019.

*Doutorando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Bolsista CAPES).

Obs. o texto será publicada integralmente em 2020 na obra “Religar-se” do mesmo autor.

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