O Golpe de Estado na Guiné-Bissau: Reflexões sobre soberania e cooperação lusófona

Cídio Lopes de Almeida*

Para quem acompanha as dinâmicas desses países, por interesses diretos em temas de ordem acadêmico-cultural, resta-nos perguntar o que pensar ou dizer em momentos como os que se desenvolve na República da Guiné-Bissau. É um problema dos guineenses?”

As relações entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) constituem um espaço singular de afinidades históricas, culturais e linguísticas, no qual a opinião pública entre nós circula com certa timidez. Nesse ambiente sociolinguístico comum, surgem inevitavelmente perguntas sobre até que ponto devemos nos pronunciar acerca de questões políticas internas que afetam um país irmão. O cenário recente na República da Guiné-Bissau reacende esse debate, exigindo que situemos nossa reflexão entre o respeito à soberania nacional e a consciência de que certas crises institucionais ultrapassam fronteiras, mobilizam afetos e despertam responsabilidades partilhadas no quadro mais amplo das relações internacionais e da cooperação multilateral. É nesse horizonte de proximidade e responsabilidade intelectual que se inscreve a reflexão que segue.

Para quem acompanha as dinâmicas desses países, por interesses diretos em temas de ordem acadêmico-cultural, resta-nos perguntar o que pensar ou dizer em momentos como os que se desenvolve na República da Guiné-Bissau. É um problema dos guineenses? Parece que, em resposta simples, podemos dizer que sim, é uma questão e um problema deles; porém, quando um problema de outro passa a ser um problema para nós?

No Direito Internacional, a soberania limita a intervenção externa, porém rupturas graves como golpes de Estado deixam de ser assuntos internos quando ameaçam a paz, a ordem constitucional e os direitos humanos. Nesses casos, conforme o artigo 2 da Carta da ONU e a doutrina da responsabilidade de proteger, a comunidade internacional passa a ter interesse legítimo. Dessa forma, a instabilidade institucional torna-se objeto de atenção e possível ação coletiva. Ademais, pelas amizades e relações com colegas acadêmicos, somos levados, de modo irrefletido, a tomar como nossas essas questões. Nosso sincero interesse fraternal faz com que desejemos o melhor para os amigos, e uma ruptura da ordem institucional parece não ser sintoma dessa jornada.

Como docentes, sabemos que nosso alcance se limita às mentalidades, e cada leitor, no uso de sua liberdade, pode aceitar ou rejeitar nossas ideias. Em contraste, interesses capitalistas e investimentos externos tendem a agir de forma imediata em momentos de instabilidade, muitas vezes alinhados a Estados estrangeiros.

Para compreender o que ocorre na Guiné-Bissau seria necessário situar o fenômeno no contexto da região organizada em torno da Communauté Économique des États de l’Afrique de l’Ouest (CEDEAO). Nosso exame, limitado pela distância do cotidiano local, não pretende aprofundar essa análise, mas indica que ela ganharia consistência se orientada pela pergunta sobre como política e economia se articulam, sobretudo diante do peso dos fluxos econômicos e da história de interferências na região, na qual países como a França têm atuado. A compreensão da ruptura constitucional dependeria dessa atenção aos processos geoeconômicos, que raramente aparecem de forma transparente nos meios de comunicação.

A cautela que aplicamos no campo das ideias não costuma aparecer nas dinâmicas do capital. O capital age diretamente para proteger seus interesses, ignora limites de soberania e, ao investir em outro país, comporta-se como se tivesse legitimidade para influenciar decisões internas. Quando os retornos deixam de ser favoráveis, retira-se sem compromisso. Numa leitura crítica, utiliza ao máximo os recursos disponíveis e não assume os efeitos sociais negativos que produz.

No que se refere aos investimentos, a relação do Brasil com a Guiné-Bissau ocorre sobretudo por meio de programas de formação universitária e de cooperação técnica limitada em agricultura. O volume de investimentos privado é reduzido, próximo a nulo, como ser interpretado no próprio site da Câmara de Comércio e Integração Brasil ECOWAS/CEDEAO. Em contraste, as bolsas oferecidas pelo Estado brasileiro por meio do PEC-G constituem um investimento direto na formação de jovens guineenses, que passam a ter acesso gratuito ao ensino superior no Brasil. Essa iniciativa amplia a qualificação de quadros e pode contribuir, a médio prazo, para a vida institucional e social da Guiné-Bissau. É uma política que retoma vínculos históricos entre os dois países e envolve o Brasil na formação de agentes que atuarão na vida pública guineense.

Para o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva**, a relação com os países africanos precisa ser pensada em termos de reparação histórica, qual não deve ser entendida como pagamento monetário, mas como compromisso contínuo de cooperação, especialmente por meio da educação, da transferência de tecnologia, de investimentos produtivos, da presença diplomática e do suporte a projetos sociais e de desenvolvimento. Essa perspectiva converge com uma concepção tradicional de reparação como restabelecimento da dignidade, reconhecimento do passado e promoção de justiça social, não necessariamente como compensação financeira. Em linguagem afetiva, é possível afirmar que os guineenses são parte de nossa família histórica, e, mesmo respeitando a soberania de seu Estado nacional, desejamos o melhor para o país e a plena restauração da democracia como forma superior de governança. Do mesmo modo, esperamos que os interesses de cooperação cultural e científica sejam resguardados neste momento de instabilidade.

* Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória. Bolsista pesquisador FAPES.

**BRASIL. Presidência da República. Pronunciamento do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva após encontro com o Presidente de Cabo Verde, José Maria Neves. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/pronunciamento-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-apos-encontro-com-o-presidente-de-cabo-verde-jose-maria-neves. Acesso em: 27 nov. 2025.

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