Nelson Faria
O Carnaval de São Vicente não é um mero evento no calendário, é, acima de tudo, uma pulsação vital que dita o ritmo da própria existência do povo de Soncent. Está na alma e no “sangue”, uma herança cultural tão profunda que a lógica binária de “ter ou não ter” simplesmente não se aplica. Aqui, reina o Carnaval, “passa sab, passa margose”, carnaval sempre, como um lema de resiliência e desprendimento que encapsula o espírito vicentino.
Para a nossa gente, o Carnaval tem de ser, tem de ter. A maioria assim define. Por isso, sua realização não é uma questão de conveniência, mas de necessidade existencial. Com grupos ou sem grupos, com chuva ou terramoto, a festa há de acontecer, pois sem ela, o povo não vive e, mais importante, não aceita viver. É uma declaração coletiva de identidade que se sobrepõe a qualquer obstáculo. Confesso, para o próximo ano tinha uma perspectiva diferente, mas, consigo compreender e aceitar a posição da maioria. Soncent é assim…
Esta força da vontade popular é, de facto, soberana. A decisão de avançar com o Carnaval, mesmo perante a prudência de uma perspetiva contrária que alerta para priorizar atuação sibre as consequências da tempestade Erin, não foi tomada por nenhum “dono” ou “iluminado” da festa. Foi uma decisão da maioria, um veredito popular que está nas ruas e nas pessoas. É o povo a reafirmar o que considera “essencial”. Com ou sem bancadas, com ou sem a estrutura ideal, faça sol, chuva ou tempestade, a celebração irá à frente, porque a sua essência reside na vontade indomável das pessoas, e não na perfeição das condições.
Sendo o Carnaval uma festa intrinsecamente nossa, é perfeitamente legítimo que aqueles que aceitam desfilar nas condições atuais o façam. Movem-se pela alma que os liga ao evento, por um amor tão profundo à tradição que supera as adversidades e as limitações logísticas. Estes fazedores são guardiões do espírito carnavalesco, e a sua entrega é um ato de pura paixão. No entanto, é crucial não descurar a vertente económica que, frequentemente, ganha corpo longe de quem realmente faz o evento acontecer. Muitas vezes, o lucro e o benefício financeiro circulam em esferas distantes daqueles que suam, criam e desfilam, levantando uma questão premente sobre a justa distribuição dos proveitos.
Da mesma forma que acho legítimo quem queira participar e fazer acontecer a qualquer custo, acho igualmente legítimo e necessário quem opte por não o fazer. Esta abstenção, assente numa perspetiva diferente sobre a visão, elevação e melhoria do evento, é um ato de consciência. Questões de ordem económica, cultural, logística e financeira não podem ser ignoradas. Quem defende uma pausa ou uma reformulação não o faz, necessariamente, por oposição à festa, mas por acreditar que ela pode e deve ser melhor, mais inclusiva e mais justa para todos os seus intervenientes. Esta é uma posição tão válida e amorosa quanto a primeira, pois ambiciona um futuro mais sólido para a tradição.
É superficial e sem profundidade o julgamento demagogo e simplista que reduz este debate complexo a mera “politiquice”. Este rótulo, frequentemente, está nos olhos e na voz de quem o preconiza, numa tentativa de descredibilizar argumentos legítimos. Na realidade, a minha perspetiva é que o cerne da questão nada tem a ver com jogos partidários. O que está verdadeiramente em jogo é a elevação do evento, particularmente do desfile oficial, para um patamar que sirva verdadeiramente a todos. Um patamar onde os principais protagonistas, os fazedores do Carnaval, os grupos, os artistas, ganhem o que merecem com o evento: condições dignas, reconhecimento cultural e uma compensação financeira justa.
O espetáculo que estes talentosos protagonistas criam merece ser visto e valorizado numa dimensão superior ao status quo existente. Um modelo que, na prática, serve a alguns e não a todos, precisa de ser revisto. A luta por um Carnaval mais elevado não é um ataque à tradição, mas sim a sua maior defesa. É o desejo de que a festa que habita no sangue do povo de São Vicente reflita, também na sua organização e equidade, a grandeza e a paixão daqueles que a tornam realidade. Só assim a alma do Carnaval poderá brilhar em toda a sua plenitude, honrando o seu passado e garantindo o seu futuro.
Portanto, levar isto para o campo do jogo político é redutor do que está em debate, é a manipulação conveniente ao status quo.
Desde já, mesmo prevendo que o desfile oficial não seja, de todo, do nível que estamos habituados, pois, os que não estarão farão muita falta, auguro que seja mais um evento identitário que assinala a resiliência e o resplandecer da alma deste povo.
