Por: José Manuel Araújo
Seja por limitações logísticas, financeiras ou outras, a TCV tem a consciência do desequilíbrio que ela introduz na divulgação da diversidade de opiniões existente em Cabo-Verde sobre matérias sensíveis, tais como o centralismo ou a regionalização. E penso que tem e sempre teve tudo, ou quase, para poder fazer diferente. Por exemplo, como abordar o combate a um problema tão pernicioso ao país, como o é o centralismo?
Sendo hoje cada vez mais raro e condenável que Estados se enveredem por essa via, deve-se entender o caso de Cabo Verde como muito suigeneris e preocupante. Por exemplo, uma história de séculos antigos que naquele tempo pudesse ter formatado entre os portugueses uma mente portuguesa que reconheceria Lisboa capital do império como a única parte nobre da nação, não poderia ter conduzido a uma interpretação daquele centralismo como algo que glorificasse a pátria? E que aquela interpretação esteja, ainda que de forma diluída, na origem do pensamento e do modo como se encara e se debate o centralismo hoje em Portugal? Ou que, do impressionante centralismo angolano para se escapar à morte, esteja a longa guerra na origem do pensamento e do modo como se encara e se debate o centralismo hoje naquele país?
Mas, mesmo assim, não se tem memória de um Porugal ou de uma Angola que afugentem tanto os seus filhos não capitalinos como acontece em Cabo-verde.
Se do centralismo português e do centralismo angolano se consegue deduzir muito mais portugalidade e mais angolanidade respetivamente, como um direito que cabe a toda a sua população, paradoxalmente, no nosso país, onde temos um tipo de centralismo sem paralelos, o que mais se destaca no debate sobre o mesmo é a forma como se procura aninhá-lo a outras realidades, a fim de recriar paralelismos que o qualificam como igualmente fruto de processo natural, e por isso sem culpas nem precisão de caminhos alternativos. Uma originalidade que deixa a nu a nossa pungente necessidade psicológica de centralizar.
O nosso centralismo foi edificado sobre um contexto imediatamente trabalhado a partir de 1975, com uma sinergia institucional que resulta hoje em enormes deformidades psicológicas e morais em toda a sociedade cabo-verdiana.
Nela não se pode deixar de reconhecer a presença duma elite emergente que vem funcionando como a pedra angular dessa construção donde se destaca a Televisão de Cabo Verde que parece chamar a si a responsabilidade de ligar todos os elos e promover a harmonia, a lógica e a proficuidade do sistema centralizador, além da presumida legitimidade e poder, aos seus promotores. Dessa acção permanente foi-se introduzindo no país um conjunto de construções mentais que propiciassem terreno pronto para naturalizar quaisquer tipo de atropelos à honorabilidade e à credibilidade de parte substancial da Nação.
Na linha da frente dessa acção encontram-se iniciativas tais como: (I) abordar Cabo Verde como se tudo começasse e terminasse nas fronteiras da Ilha de Santiago, através, por exemplo, da produção de livros didáticos para crianças do ensino básico, onde elas lêm, vêm e aprendem que Cabo-Verde é Santiago; ou na Comunicação Social, em que um problema em Santiago seria um problema nacional e um problema noutra ilha seria um problema local; (II) ou referênciar outras ilhas verbalizando a expressão – “aqui em Santiago e nas ilhas” – em vez de “nas outras ilhas”, divulgando a subjacente ideia de que, em Cabo Verde, Santiago é continente.
Um tipo de discurso enfim, que incute no povo cabo-verdiano o complexo e o receio de que qualquer pensamento ou acto não ajustado à visão ou aos interesses da Praia, podem ser encarados como uma falta de razoabilidade senão mesmo, uma afronta à pátria.
E é nestas bases, por exemplo, que os debates televisivos apresentam sempre convidados que dão garantias de trazer com eles a certeza de os transformarem em encontros, onde se prima por ignorar a existência de dez ilhas. Nesses debates, o prato dose é obviamente o Estatuto Especial para a Cidade da Praia que, na falta de argumentos consistentes, é bafejado por um conjunto de privilégios e facilidades concedidos pela própria Comunicação Social, tais como se auto-silenciar perante as persistentes e oportunistas contradições argumentativas, ou abafar as arbitrariedades na montagem quase descarada de raciocínios conducentes a conclusões previamente definidas, para além de poderem contar e confiar noutras oportunidades que lhes permitirão voltar ao mesmo palco, seja para limarem as arestas e concluirem as suas ideias, seja para corrigirem e ajustarem o discurso e as falhas anteriores a um renovado e mesmo propósito.
E, para cortar o mal pela raíz, sequer se admite a existência duma autonomia da emissora pública, também em S. Vicente. E nem se vislumbra a mínima demonstração de disponibilidade para se recuar na história e reconhecer os áureos tempos em que S. Vicente dispunha de duas estações emissoras – a Rádio Clube Mindelo e a Rádio Barlavento -, que marcaram indelevelmente o arquipélago pela qualidade e profissionalismo dos seus técnicos e do seu trabalho informativo e cultural.
(Continua no próximo episódio)