Por: Nelson Faria
O poder político, entendido como a força ou autoridade que conferimos, ou permitimos, a outrem de agir em nosso nome tem sido, visivelmente, deturpado em favor de ações de determinadas coletividades ou individualidades, sobretudo quando esse poder se prolonga no tempo por períodos superiores a mais de dois mandatos, quer a nível central, quer a nível local. Não é novidade de tão evidente que é.
Na desculpa de um mal que se tem generalizado, a culpa recai, quase sempre, sobre o abstrato poder, sem se identificar a razão real, o carácter dos indivíduos que é revelado, sem descurar que, de facto, o poder exercido por muito tempo não é benéfico nem para o melhor dos Homens. Admira-me, por isso, gente que se diz “democrata e defensor da liberdade” defender “democraduras” – a perpetuação do poder exercido de forma não democrática.
Em bom rigor, o que se tem visto é a luta constante pela extensão e vénia infinita ao poder, per si, porque esse sim interessa acima das ideias, dos ideais, das pessoas e, ditas, convicções políticas. Interessa que o “clube” do partido que defende tenha poder.
Perde-se a racionalidade, a decisão não se baseia na defesa do interesse comum, não considera as competências e a preparação das pessoas para essa responsabilidade de servir e representar o coletivo. Criam-se narrativas e rótulos para os que pensam diferente ou estão em linha contrária, as equipas de trabalho e projetos são secundarizados.
O partido e o poder, sim, são relevantes. Mesmo que nele naveguem um mar de incompetentes apenas interessados na manutenção da posição de poder e seus benefícios. Mesmo que esse poder mantido lese os acólitos defensores do partido, seus eleitores, mesmo que o detentor desse poder seja uma pessoa que inibe a melhoria da coletividade. Ao que parece, no final, o importante para esses é proclamarem: “o meu clube é campeão”. Aí, claro que a responsabilidade do poder estar mal entregue é de quem a atribui.
Nada tenho contra partidos, pelo contrário, já disse, em democracia são parte indissociável, pois sem partidos não há governação, não há democracia, tenha o nome ou formato que tiverem. Mas, interessa-me mais as pessoas, suas competências e sua capacidade de exercer o poder em nome e em prol do coletivo, independentemente do lado onde estiverem. Na verdade, os partidos são instituições mortas sem as pessoas, por isso, creio que em qualquer pleito eleitoral o que deve ser avaliado, além dos amores / ódios cegos aos clubes partidários, são as pessoas. As suas valências, as competências, as suas capacidades e potencialidades, a forma como podem ou exercem o poder.
De autores especializados no assunto como Dacher Keltner e Heni Ozi Cukier, já posto em outro escrito, facilmente compreendemos que a experiência do poder impulsiona o indivíduo para uma de duas direções: abuso de poder, às vezes até involuntariamente, impulsividade e ações antiéticas ou o comportamento benevolente que promove o bem maior. Pois, o poder não transforma, não muda a moral e a ética. O poder revela! Tira os freios e alavanca aquilo que já existe. Ninguém torna o que não é porque chegou ao poder, a não ser que já tivesse essa propensão.
Portanto, o egoísmo, a arrogância e a sobranceria, a falta de empatia não advém do poder, mas sim do indivíduo. Pior se torna quando não há controle, travão e limitação desse poder. Nem outros poderes, particularmente o judicial, se for parcial, têm força, ou vontade, para o corrigir. Se a isto tudo adicionarmos o perfil de um indivíduo que se confunde com o poder, achando-se o seu proprietário, ignorando o seu verdadeiro dono, ignorando eventuais outras forças de controle, quem o elegeu e representa, ou, mesmo, os seu pares, temos o caldeirão para uma perfeita “democradura”.
Nestas condições, não, não é a livre vontade popular que permite a continuidade do indivíduo nesse poder, é a manipulação do poder e dos seus meios que o faz. Por isso, as inquietudes da nossa realidade permanecem: E se houvesse limitação de mandatos para todos os cargos políticos, à semelhança do que acontece com a Presidência da República? Porque não acontece? Se calhar, é isso, não convém a quem o detém desde que tempo é tempo. Por que o dono do poder, a sociedade como um todo, nada faz para mudar este status quo?
Na minha perspetiva, já é tempo de mudança de paradigma no exercício do poder no concernente ao limite de mandatos, pois, já que cada indivíduo é cada um, todos com virtudes e defeitos, e todos têm a prerrogativa de concorrer às posições em disputa, o poder não pode ser confundido como propriedade de nenhum, o número de mandatos deve ser limitado de modo que se saiba, à partida, que têm um tempo limitado para exercê-lo em prol da coletividade. Da mesma forma, o exercício do poder pode e deve ser partilhado e participado, entre eleitos e com a sociedade civil, numa dinâmica de interação que permite que todos reconheçam como parte desse poder que, na verdade, pertence a todos.