Regionalização: Quando quase todos “aparentemente” têm razão

José Fortes Lopes

Os deputados por S.Vicente (da situação e da oposição) voltaram a digladiar a semana passada no Parlamento cabo-verdiano sobre as responsabilidades/culpas da Suspensão do processo legislativo da Regionalização ocorrido em Abril de 2019, e que se encontrava em fase avançada de aprovação na Especialidade, atirando culpas uns aos outros. Sobre este assunto escrevi um extenso artigo publicado em Maio de 2019 no MindelInsite “Regionalização, um processo suspenso ou pendurado no Parlamento cabo-verdiano: Considerações sobre um impasse legislativo” e que mantém actual, concluindo que quase todos os intervenientes neste processo “aparentemente” têm razão.

No cômputo geral, quem ficou a ganhar são os interessados no Status-Quo, e que viram na Regionalização uma ameaça ao seu estatuto. São os mesmos que em geral são contra a liberalização da economia, a parcerias e intercâmbios com países, a abertura da economia de Cabo Verde ao Mundo, já que, quanto mais fechado se mantiver o país, maior é o controlo político e ideológico sobre as populações e maior é o poder das elites dominantes.

Qualquer mexida no sistema é, pois, uma ameaça aos interesses enquistados na máquina do poder desde 1974/75. São eles os ultraconservadores, os fundamentalistas, os ortodoxos doutrinários, os anti-regionalização de primeira hora, indiferentes às assimetrias crescentes no arquipélago e que defendem a legitimidade histórica, política e ideológica do Centralismo, legitimando a apropriação pelo centro do quinhão dos recursos disponibilizados a Cabo Verde pela comunidade internacional.

Juntaram-se outras pessoas e grupos de interesses diversos, que beneficiam dos vários subsídios e estipendias, todos gravitando em torno dos poucos metros quadrados do Plateau da Praia e do poder. À nebulosa com contornos indefinidos, vieram juntar-se ainda ao concerto dos conservadores novos elementos, alguns aparentados mais modernos e progressistas, mas com agendas diversas. Acredito que a vitória dos conservadores foi passageira e aparente e que a Descentralização voltará em força e com melhores argumentos.

 Tudo isto acaba por complicar tudo nesta fase em que se precisava de uma plataforma alargada de entendimento, incluindo a sociedade, os partidos parlamentares, com as suas Propostas, obrigando a todos um avanço na causa da Regionalização, mas sempre no intuito de melhorar o modelo, no melhor interesse das ilhas e de Cabo Verde.

Com efeito, ao invés de terem contribuído para o debate desde 2017, quando as propostas dos partidos começaram a aparecer, os grupos que hoje reclamam das insuficiências do projecto governamental desperdiçaram uma oportunidade única de participar e melhorar o que estava em cima da mesa. E havia pano para manga nesta matéria, já que as propostas, a do poder e a da oposição, não esmiuçaram até ao âmago todos os aspectos da Regionalização e da Descentralização, deixando inúmeras pontas soltas.

O movimento Sokol, por exemplo, que contesta publicamente o princípio da Regionalização, opondo-lhe o seu modelo “fetiche” de Autonomia, poderia tê-lo apresentado naquela ocasião, em vez disso hoje, tardiamente, apresenta ideias avulsas ou desengonçadas, logo de pouca utilidade prática. É por isso que, apesar de termos (o Grupo da Diáspora) saudado as propostas dos partidos, apontámos logo à partida várias lacunas evidentes, tais como a insuficiência da Autonomia e a ausência de Reformas da máquina administrativa, demonstrando mesmo a necessidade de fazer transitar o sistema cabo-verdiano para um novo regime de democracia regional, com duas câmaras, parlamentar e senatorial, uma espécie de sistema federativo em substituição da pseudodemocracia baseada exclusivamente nos números.

Inclusivamente Miranda Lima e Pascoal Santos defenderam um modelo mais racional de Regionalização, que é o que reagrupa as ilhas da região Barlavento e Sotavento do arquipélago em duas macro-regiões, uma com centro em Mindelo e outra com centro na Praia. Segundo eles, essas regiões, para além de congregarem afinidades geográfica e culturais, aumentam as sinergias no arquipélago e têm muitas outras vantagens que desenvolveram nos seus artigos. Portanto, em todas estas matérias em debate, a contribuição do Sokol tem sido irrelevante, nunca se leu nada de substancial produzido com valor acrescentado, ou um pensamento articulado e estruturado, resumindo em contrapor Autonomia à Regionalização, usando conceitos que eles mesmos não sabem definir ou sequer dominam. Inclusivamente falam dos custos da Regionalização com 9 Ilhas-Regiões, mas defendem paradoxalmente 9 Autonomias e não apresentam um único modelo de redução de custos. Portanto, as contradições deste grupo são por demais evidentes. Por isso, o paradoxo da situação actual em relação ao debate da Regionalização e à Descentralização é que a maioria das pessoas não sabe daquilo que fala, sequer reconhece o significado dos conceitos que referem, e os que tinham a obrigação, não fizeram o esforço de os estudar, de fazer aquilo que se chama em linguagem escolar, o ‘trabalho de casa’. Ao não se debruçarem sobre os conceitos, e negligenciarem o que foi produzido ao longo de anos de reflexão (e não é coisa pouca, com inputs de várias pessoas usando diferentes abordagens), ficaram pela caravela, surfando no modismo da actualidade, ou no seguidismo daquilo que os outros dizem. Ora, quem quer falar com o mínimo de coerência e autoridade, tem que debruçar minimamente sobre os conteúdos teóricos, fazer pesquisa/estudo, de modo a evitar prestar um mau serviço à causa que julga defender.

Por outro lado, ao não haver uma pedagogia/metodologia em matéria de doutrina de Descentralização e Regionalização, da parte dos partidos e do próprio poder, instalou-se no terreno a actual confusão conceitual, em forma de barulho de fundo. O debate acaba fragilizado, tornando os próprios conceitos, que eram inovadores quando foram apresentados, hoje inquinados ou armas de arremesso entre partidos e cidadãos. Com efeito, para muitos, a Regionalização é, hoje, sinónimo de Descentralização, apesar de não serem a mesma coisa, e de haver muitas nuances nos dois conceitos.

O próprio conceito de Regionalização (que foi bem definido nas várias contribuições teóricas de Adriano Miranda Lima, que podem ser revisitadas nos dois livros sobre a Regionalização) está já desnaturado. Com efeito, é errado contrapor Regionalização Administrativa à Política, pois segundo ele, os dois conceitos sequer existem, o que existe é a Regionalização “tout court”, ponto final.

Trata-se, pois, de um erro crasso de linguagem falar de Regionalização Administrativa ou Regionalização Política, induzido pela ausência de pedagogia nesta matéria, e que está a prejudicar o debate. As componentes Administrativa e Política são, com efeito, competências anexas, assim como uma maior Autonomia no quadro da Regionalização seria uma delas. Mesmo aí o movimento Sokol que transformou a Autonomia numa bandeira, contrapondo à Regionalização (que define como, se viu, erradamente, de Administrativa), não acerta, chega tarde demais e induz o leitor às tais confusões conceituais que já deveriam estar sanadas nesta fase. Posto isto, que fique claro que não seria contra um princípio da Autonomia no quadro da Regionalização. Também nenhuma animosidade me move em relação ao movimento Sokol, apesar de múltiplas críticas que lhes tenho tecido, que se prendem com a ligeireza como abordam os conceitos, do que questões de fundo.

É assim que, reagindo ao próprio barulho instalado e à pressão em torno da Regionalização, Descentralização, etc, o governo caiu no jogo/armadilha, colocando em 2017 em S. Vicente o Ministério dos Transportes, pedido e aplaudido por muitos como uma medida de inovadora da Descentralização, uma falsa medida, a meu ver inútil, uma não-solução, mas que respondia ao populismo ambiente saído das manifestações do mesmo ano em S.Vicente. Ora, descentralização de poderes de decisão não significa forçosamente transferência física de Ministérios, sobretudo num mundo de hoje, digital, pese embora a necessidade de dotar as ilhas/regiões em processo de desertificação avançada de recursos humanos adequados.

Mesmo assim, penso que o país não saiu beneficiado deste processo que resultou na suspensão da Regionalização. Ficam dúvidas sobre a sinceridade do PAICV em relação às teses sobre as Reformas (de que nós (Diáspora) fomos os arautos), ou em matéria de Regionalização e Descentralização, já que havia soluções políticas mais inteligentes do que o bloqueio constante e sistemático da votação dos artigos na Especialidade. Para além disso, o PAICV defendeu durante o debate um conjunto de ideias avulsas, não estruturadas, contrariamente ao Diploma que submeteram ao país em meados de 2018, e mesmo o indefensável, ou seja a extinção ‘por dá cá aquela palha’ de municípios em várias ilhas, incluindo S.Vicente, pelo que a ilha da Regionalização ironicamente ganharia uma Região e perderia a sua única Câmara…
Consultem no link (http://134.209.187.9/regionalizacao-um-processo-suspenso-ou-pendurado-no-parlamento-cabo-verdiano), o artigo anterior publicado em Maio de 2019 no Mindelinsiste.

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