Nem tudo é culpa da Natureza

David Leite

É hora de falar dos esgotos em S. Vicente, um verdadeiro câsse-tête para as autoridades sanitárias e municipais depois da passagem do furacão Erin. A Câmara Municipal continua a braços com os estragos a reparar, a Delegacia de Saúde fazendo o que pode para não periclitar a saúde pública, tudo a bem de uma população que já teve razões de sobra para estar incomodada e recear doenças. Incomodada, mas também descontente, pois nem tudo é culpa da Natureza.

Falar dos esgotos em S. Vicente não é só apontar o dedo ao tenebroso Erin que tanto mal nos fez – é também reflectir sobre os defeitos do saneamento básico, os erros e comportamentos contra-natura daqueles que tiveram em mãos a responsabilidade do ordenamento urbanístico e sanitário do município ao longo dos últimos anos.

Ano após ano, por pouco que chova, as caixas da rede pública ficam saturadas e transbordam pelas ruas de S. Vicente. Ano após ano vimos assistindo a esse terrível déjà-vu, e não sei se alguém se incomodou sobremaneira, por ser um fenómeno passageiro. Até que o furacão Erin nos veio bater à porta, transformando um fenómeno cíclico numa calamidade. As consequências estiveram à vista – e no nariz – de todos! A imundície tomou conta da ilha, com ribeiras de esgoto correndo a céu aberto, confundindo-se os resíduos fecais com os aluviões que desabavam das zonas altas e se acumulavam nas bacias a jusante.

O esgoto público e as reais necessidades da população

Pode parecer redundante, mas faz sentido perguntar se a rede de esgotos vem acompanhando as reais necessidades de uma população que não para de crescer, e com ela o parque habitacional. Atentemos em coisas óbvias, a começar pelo crescimento demográfico: 36.000 habitantes, salvo erro, à data da independência, 78.137 recenseados em 2021. Em 50 anos, mais que duplicou a população de S. Vicente! E quem diz aumento da população, obviamente diz mais moradias, prédios de apartamentos, complexos imobiliários e condomínios, serviços públicos (escolas, hospitais…) e, tourisme oblige, hotéis e residenciais… Ou seja mais cozinhas, mais casas de banho, mais instalações sanitárias…

Claro que não ficámos parados, nem podíamos: lembro-me de, nos anos oitenta, andarem por cá umas equipas técnicas de cooperantes portugueses a trabalhar num Plano Sanitário, do qual resultou, em 1987, a Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) na Ribeira de Vinhas. No portal da Câmara Municipal, lê-se que “Em 2007 procedeu-se à ampliação da ETAR, com a construção de uma segunda linha de tratamento (…) para receber os afluentes da zona do Lazareto e da conserveira FRESCOMAR após o pré-tratamento na ETAR privada”.

Saneamento básico, feitos e defeitos

As águas residuais da ETAR, de proveniência doméstica e Industrial, são utilizadas na lavoura e na rega de jardins públicos. Bom trabalho, sem dúvida, pena é “compô c’um mon, xtragá c’ôte”! Ao “boom” da construção imobiliária juntou-se o caos urbanístico e sanitário a que vimos assistindo impávidos e serenos, até às polémicas que ultimamente têm feito correr muita tinta numa opinião pública que levou tempo a acordar.

Hoje, quando chove, não é só lama como antigamente, mas também plásticos e materiais não-biodegradáveis, garrafas e embalagens industriais, preservativos, fraldas, pensos higiénicos… Esses e outros lixos de diversa proveniência vão parar ao mar que nada pediu! Ultimamente, empreiteiros sem escrúpulos, movidos unicamente pelo dinheiro, canalizam directamente para a rede de esgotos as águas dos terraços e varandas que antes eram drenadas através de bueiros e goteiras directamente para a rua. E quando chove, vai tudo pelos esgotos abaixo. Com este e outros comportamentos de risco, sabia-se que a rede de esgotos acabaria saturada. Este congestionamento agrava-se ano após ano.

Por um sistema de esgoto pluvial em São Vicente

Que pode o homem contra a fúria da Natureza, a não ser aprender com os próprios erros? O pior já passou, mas a verdade é que o problema persiste, é estrutural e não se compadece com remendos e soluções de conjuntura. Pessoalmente, há anos que me anima a esperança de ver um verdadeiro sistema de esgoto pluvial em S. Vicente, completamente separado do esgoto de águas residuais. Tanta água correndo inutilmente para o mar, acarretando prejuízos que poderiam ser evitados, em vez de ser aproveitada!

Já temos, na Rua do Côco uma boa experiência de captação de águas pluviais por depósito subterrâneo. Vejo com bons olhos essa experiência replicada em outras zonas baixas (como Ribeira-Bote e Chã de Alecrim), unidas por um sistema de galerias. Essas zonas baixas, em vez de ficarem alagadas quando chove torrencialmente, serviriam de colectores e reservatórios subterrâneos.

Havendo dinheiro, haja vontade e visão estratégica. Tempo temos, daqui até às chuvas do próximo ano. Água de chuva não é colega de água de esgoto!

Sair da versão mobile