Mutabilidade: Da governança à pedagogia

Arlindo Nascimento Rocha

“Educar é preparar para enfrentar a incerteza e a mudança,

e não apenas transmitir certezas estabelecidas.”

[Edgar Morin].

Recentemente participei de uma palestra sobre governança e gestão de riscos na administração pública. Durante a exposição, chamou-me a atenção um conceito até então inédito para mim e que motivou profundas reflexões posteriores: a chamada “governança da mutabilidade”.

Em pesquisas subsequentes, aprofundei a compreensão desse conceito e percebi que ele se refere à gestão e regulação de alterações em contratos ou políticas públicas, assegurando que mudanças possam ser implementadas sempre que necessárias, de modo a salvaguardar o interesse público, sem desrespeitar os acordos originais e preservando a segurança jurídica.

Este modelo parte do reconhecimento de que a estabilidade absoluta é ilusória. Por isso, privilegia a resiliência institucional, a adaptação e a inovação contínua como eixos fundamentais. Não se trata de improvisação, mas de um planejamento flexível, capaz de oferecer respostas ágeis sem comprometer princípios de integridade, transparência, controle e responsabilidade.

Alguns dias depois, em conversa com amigos sobre os desafios da educação contemporânea, tive um insight que partilhei de imediato. Relatei como aquele conceito havia me impactado e sugeri que poderia ser transposto, de forma adaptada, ao campo educativo. Dessa reflexão nasceu a ideia da “pedagogia da mutabilidade”. Após uma breve justificação, a receptividade foi tão positiva que fui incentivado a escrever sobre o tema, dada a novidade e relevância do assunto.

À primeira vista, pode parecer uma comparação trivial, uma vez que ambos os conceitos parecem pertencer a esferas distintas. Contudo, uma análise mais aprofundada revela uma conexão importante. A governança da mutabilidade refere-se a contratos e políticas de longa duração, que necessitam de mecanismos de adaptação; já a educação, também um projeto social de longo prazo, encontra-se igualmente sujeita a transformações constantes.

A questão que se coloca, então, é: qual é o nexo conceitual que sustenta esta aproximação? A governança da mutabilidade pode ser entendida como uma forma estruturada de adaptação a mudanças inevitáveis, sobretudo em contratos de longa duração. A maior parte das mudanças não decorre por falhas de previsão, mas da impossibilidade de antecipar todos os cenários futuros. Assim, contratos requerem dispositivos que permitam ajustes, garantindo a sua eficácia e viabilidade.

Analogamente, a educação pode ser compreendida como um projeto social coletivo de longo prazo, igualmente exposto a transformações contínuas. Esse caráter mutável acontece por uma série de fatores. Entre os mais importantes, citarei apenas dois. Primeiro: a educação é um processo dinâmico, constantemente atravessado por mudanças sociais, políticas, económicas e tecnológicas; segundo: os sujeitos do processo educativo são: crianças, jovens e adultos que se encontram em permanente transformação. Desta forma, confirma-se a máxima do filósofo Immanuel Kant de que “o homem é um ser inacabado”, isto é, encontra-se sempre em processo de aprendizagem, desenvolvimento e adaptação. Nenhum ser humano nasce pronto ou acabado, ao contrário, precisa educar-se continuamente para tornar-se verdadeiramente humano.

A escola, por sua natureza, é um organismo vivo e dinâmico. Os gestores, os professores, os alunos, os pais e a sociedade em geral, precisam compreender os desafios antigos e emergentes e agir em consonância com os cenários em constantes transformações. Na educação, é preciso reconhecer que a estabilidade absoluta, típica dos modelos tradicionais está ultrapassada. A escola deve, portanto, incorporar as mudanças que ocorrem na sociedade e no mundo.

Desse modo, os modelos tradicionais de educação, caracterizados pela rigidez curricular e metodológica, mostram-se insuficientes para responder à complexidade das mudanças atuais e às novas inter-relações sociais. É nesse contexto que surge a pedagogia da mutabilidade, concebida como um paradigma inovador que entende a educação como processo aberto, inacabado, sujeito a revisões permanentes e a adaptações contínuas, de modo a oferecer respostas flexíveis às transformações da sociedade contemporânea.

A educação formal e informal, outrora marcada pela inflexibilidade, atualmente não corresponde ao modelo tradicional que a caracterizou durante décadas. Hoje, exige-se dos teóricos e profissionais da educaão, o desenvolvimento, a revisão e o aprimoramento das teorias e das práticas educativas de forma contínua. Só assim, serão capazes de enfrentar, de forma propositiva, os desafios emergentes e de assegurar a relevância social do processo educativo.

Enquanto proposta pedagógica, a pedagogia da mutabilidade pode ser definida como um paradigma dinâmico e interativo, estruturado para responder de forma contínua e flexível às transformações sociais, culturais e tecnológicas. Distingue-se dos modelos tradicionais por valorizar a adaptação permanente, a resiliência institucional e pedagógica, a integração crítica e a inovação.

Ao contrário dos currículos rígidos e avaliações padronizadas, a pedagogia da mutabilidade propõe práticas educativas abertas, capazes de se ajustar em tempo real às necessidades dos alunos e às mudanças sociais. Alia, assim, flexibilidade, inclusão e ética, promovendo ao mesmo tempo aprendizagem personalizada, equidade e integridade institucional diante das incertezas.

A centralidade da proposta reside no reconhecimento de que a mudança não é exceção, mas regra. A educação deve, nesse sentido, assumir como meta o rompimento com a rigidez dos sistemas tradicionais e afirmar-se como resposta necessária em um mundo caracterizado pela volatilidade e complexidade. Isso implica atualização constante do currículo, das metodologias, dos instrumentos de avaliação e dos próprios objetivos educacionais.

A pedagogia da mutabilidade recusa a lógica do “tamanho único” ou do “sempre foi assim”, frequentemente resumida na chamada síndrome de Gabriela: “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim”. Em contrapartida, defende a construção de mecanismos de revisão contínua de processos pedagógicos, alinhando-os a contextos e demandas emergentes.

Se estruturada de forma consistente, ela pode contribuir significativamente para o desempenho dos alunos, alinhando conteúdos, ritmos e métodos de aprendizagem às necessidades individuais e coletivas. O currículo deixa de ser um corpo rígido, e a avaliação passa a adquirir caráter formativo, ajustando-se em tempo real ao progresso de cada estudante.

Para os professores, tal transformação exige o desenvolvimento de novas competências e habilidades no domínio das tecnologias de informação e comunicação, análise crítica das teorias e práticas educacionais, capacidade de planejar e executar trilhas de conhecimento com percursos flexíveis e de posicionar-se eticamente em ambientes complexos. A docência deixa de ser mera transmissão vertical de conteúdos para assumir-se como mediação crítica, capaz de criar condições para a autonomia intelectual, o pensamento reflexivo e a aprendizagem contínua.

Em síntese, a pedagogia da mutabilidade desponta como um projeto indispensável à educação contemporânea. Ao reconhecer a mudança como elemento constitutivo, e não como exceção, abre caminhos para a renovação curricular, metodológica e cultural da escola. Mais do que improvisar, propõe planejamento flexível, aprendizagem permanente e a capacidade de transformar as incertezas em oportunidades.

Entre suas recomendações práticas, destacam-se: a revisão curricular permanente, a integração crítica de tecnologias inteligentes, o desenvolvimento da literacia digital e o fortalecimento da formação docente. Assim, a pedagogia da mutabilidade não apenas responde às exigências do presente, mas prepara a educação para o futuro, consolidando-a como campo de inovação, autonomia e renovação contínua.

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