Mindelo, minha cidade

Euclides Cardoso

Os primeiros raios de um dia morno iluminam a Rua Papa Fria. Entre sonhos e trajetos perfeitos, o recém-nascido que chega ao hospital dá lugar ao cotidiano entrelaçado com memórias: cada pedra, cada sorriso, conta histórias de infância, juventude e esperança. Seguindo rumo à Kovada d’ Psuda, em Fonte’ Flipe, o compasso da cidade se mistura ao murmúrio das ruas, onde a vida ganha ritmo nos passos discretos dos que caminham entre lembranças e propósitos.

Na Praça Estrela, o encanto vivido.

Nos jardins esculpidos em forma de estrela de cinco pontas, o coreto era refúgio de amores inocentes. Casais trocavam olhares cúmplices sob o olhar silente da Estátua de Diogo Afonso, voltada à imensidão da Baía. A estação da polícia e o Vascona barravam o horizonte, mas os sapateiros e engraxadores, virados para as sedes – testemunhas vivas do Derby e dos clubes mindelenses –, completavam o cenário de um tempo em que cada gesto tinha cor e cada esquina sua sina.

Memórias travestidas de travessuras

Lembro-me com ternura (e um toque de riso amargo) da Amada Grilo, bem pritinha lisa, como carinhosamente a chamávamos. Num dia inesperado, saí da loja do Sr. Belmiro (Casa Gil) com a calda de tomate fresca em mãos. Agachei-me atrás de um táxi Gil, e num ímpeto, enfiando o dedo na delícia avermelhada, Grilo bradou: 

_“Cachorro, que estás a fazer?”_ 

E num instante a resposta veio certeira: 

_“Bô cachorra.”_ 

O tempo dobrou-se entre risos e repreensão. A sova que veio depois, acompanhada do sermão do Manim Estrela, selou aquele episódio que hoje transborda nostalgia – porque até nas pequenas traquinices mora a essência da infância.

Dias de sorte e subterfúgios da vida

Havia manhãs em que a sorte se revelava discreta: acordar e encontrar a gaveta fulgurando com moedas – a lembrança silenciosa de ladrões que, porventura, levaram as notas, mas esqueceram-se do tesouro cintilante. Era no Bar Lima do Sr. Bento Lima, na Rua Matijim, que a vida sussurrava segredos de tempos dourados. Como no dia em que minha primeira sapatilha, trazida pelo David – que chegara no dia anterior para surpreender a Mancóme –, afastou o receio de pisar as brasas que os ferreiros das ruas do Côco deixavam espalhadas.

As brincadeiras na estreita Rua Suburbana.

Na aconchegante Rua Suburbana, onde o movimento era tão suave quanto a brisa do mar, jogávamos golo-a-golo com bolas de meia – cada chute, uma celebração. Mas houve dias de sorte menos generosos. A bola, traquina e atrevida, atingiu o Nhô Jon d’ Júlia, que emergia da Oficina Lizardo, agora repousada na Rua 1 Monte Sossego. Nhô Giróld, vindo de Santo Antão com sua bolsinha de pano e maletinha de madeira, trazia também o feixe de vara de marmelo – remédio santo que acalmava o traquinas Kida – enquanto  bom aluno da segunda classe da Dona Valentina fugia para o banho na cais de Alfândega ou se aventurava nas pescarias do cais da SHELL.

Carnaval: festa, fantasia e liberdade.

Chega o Carnaval, e as ruas se tornam passarelas de sonhos. Vestido de Zorro, com máscara e coldre feitos de papel de lustro e cartolina compród na Toi Pumbinha, empunhava minha pistola de madeira como um herói improvisado. Entre o aroma reconfortante do pom d’midje da Nha Antónia de Solidade, ao lado da loja Pudjim, e a cantiga dos comerciantes: 

_“Plurim tem muito peixe, alvacora é o preferido; bicuda, garoupa para uns, Djeu indiferente, e cavala à vontade: dez por um tostão”

A cidade pulsava num ritmo único. E a Cachorrinha, sempre abundante, distribuía sorrisos aos passantes – um convite para levar um pouco dessa magia sem pagar nada.

No compasso das ruas e da esperança.

Ao cair da noite, a brincadeira não cessava. Com a pistola de madeira em mãos, a aventura se condensava em stikaut e jogos que só as ruas acolhiam. Entre as Ruas Suburbana, Moeda e a Rua da Luz, a ousada Precinha d’Igreja e a Casa Benfica, cada episódio ganhava vida – celebração de liberdade e criatividade, onde longas distâncias eram vencidas com um sonho no coração.

Essas histórias, entrelaçadas em poesia, nos transportam à essência dos anos sessenta em Mindelo. Cada episódio, cada rua, cada sorriso ou pancada, permanece como um marco do tempo – memória que continua a desdobrar-se em novos contos, novas aventuras, novas emoções. Afinal, Mindelo não é apenas um lugar; é um sentimento eterno, um palco onde passado e presente dançam à luz da nostalgia.

Que essa crônica continue a ser escrita, sempre com novas histórias, encontros inesperados e a mesma paixão que, desde os anos sessenta, faz de Mindelo a cidade que carregamos no peito. Quem sabe que outro episódio virá para nos surpreender nessa eterna celebração da vida?

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