Mindelo é muito mais do que ruas e casas, é o coração cultural de Cabo Verde

Américo Costa*

Mindelo é muito mais do que ruas e casas; é o coração cultural de Cabo Verde, porto, mercado, espaços de criação, festivais e memórias que atraem gente e economia. Recuperar Mindelo não pode reduzir-se a varrer o lodo e repor redes elétricas: é preciso repensar a cidade para que, perante chuvas extremas, não voltemos a assistir ao mesmo ciclo de destruição e sofrimento. A própria comunidade internacional lembra que, para além da resposta humanitária, existem riscos sanitários e necessidades de prevenção, um alerta que a OMS e parceiros de saúde já sublinharam para evitar surtos e problemas de saúde pública após inundações. 

Proposta prática com sentido de urgência e de justiça territorial

Aponto medidas concretas, pensadas para ser exequíveis e de alto impacto. Não se trata de um manifesto técnico exaustivo, mas de um plano de acção orientador, capaz de transformar a emergência em oportunidade:

1. Resposta imediata (0–3 meses)

Reforço de alojamento temporário digno e transferências monetárias às famílias mais vulneráveis.

Restabelecimento prioritário de água potável, saneamento provisório e energia nos bairros críticos.

Brigadas de limpeza e remoção de entulho com contratação local (emprego de curto prazo para quem perdeu rendimento).

Campanhas de saúde pública e vigilância: água segura, vacinação quando indicada e prevenção de doenças transmissíveis.

2. Reconstrução resiliente (3–24 meses)

Auditoria técnica das ribeiras e dos sistemas de drenagem; desassoreamento e recuperação de canais naturais com critérios hidrológicos atualizados.

Projeto urgente para reforço e dimensionamento da drenagem urbana (bacias de retenção, sumidouros, canalização adequada), com prioridade nas artérias que servem o porto e os bairros periféricos.

Programas de habitação social e subsídios condicionados à reconstrução segura (materiais resilientes, elevação de bases quando necessário).

Programa de emprego local ligado à reconstrução (obras públicas, reabilitação de equipamentos culturais, recuperação de infraestruturas portuárias).

3. Visão de longo prazo (2–10 anos)

Revisão e implementação do Plano Diretor Municipal com regras claras sobre ocupação de leitos de ribeiras e zonas de risco, participação comunitária e transparência na decisão.

Integração de soluções baseadas na natureza: reflorestação de cabeceiras, zonas húmidas temporárias e corredores verdes que retardem e absorvam cheias.

Mecanismos de financiamento e proteção fiscal: linhas de crédito de emergência, cat-DDO e fundos de contingência para eventos climáticos extremos.

Fortalecimento da Proteção Civil local: sistemas de aviso precoce, centros operacionais e formação continuada.

4. Governança e transparência

Qualquer apoio externo (do Banco Mundial ou de doadores) deve vir acompanhado de critérios claros de utilização, auditoria independente e com prioridades definidas em conjunto com comunidades locais.

Participação das associações de bairro, pescadores, artistas e comerciantes no desenho das soluções, para que as medidas protejam o que é valioso em Mindelo a economia criativa, o porto e o tecido social.

Uma chamada ao que realmente importa

Não se trata de centralizar poder por centralizar: trata-se de mobilizar a capacidade do Estado  quando necessário máxima, para garantir aquilo que a solidariedade individual não pode garantir: sistemas, justiça territorial e futuro partilhado. O Estado mínimo é uma ideia valiosa em muitos contextos; mas onde há vidas, património cultural e uma economia local dependente de serviços e de portos, o Estado tem de ser completo, presente e decisivo.

E, acima de tudo, é ao povo de São Vicente que me dirijo: a vossa coragem e afabilidade são o maior tesouro desta ilha. Vocês ensinaram-nos que a dignidade não se compra, que a generosidade é um modo de vida. As medidas que proponho existem para que essa generosidade deixe de ser sempre o último recurso e passe a ser complementada por estruturas que protejam o futuro.

Que a recuperação de Mindelo seja exemplo para pequenos Estados insulares: uma recuperação que não repete erros, mas que reescreve a história com inteligência, justiça e esperança. Que as mãos que hoje limpam as ruas se tornem as mãos que planeiam e fiscalizam um futuro mais seguro. E que todos os que amam Cabo Verde aqui e lá fora, conversem em torno de um projecto nacional que respeite a autonomia local e garanta a solidariedade material.

Com respeito, admiração e fraternidade,

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