Por Rosário Luz
Historicamente, a democracia é uma jóia rara. Mesmo regimes que se imaginavam democráticos – Atenas na antiguidade ou os Estados Unidos na modernidade – não o eram pelos padrões contemporâneos. Na Grécia antiga, a política era privilégio de uma oligarquia masculina de escravocratas; nos Estados Unidos, as mulheres só ganharam o direito ao voto em 1920, 150 anos após a fundação da república; e a população negra no Sul, só após os movimentos civis da década de 1960.
No presente, a democracia é definida pelo exercício do poder político por representantes eleitos por sufrágio universal, que governam em nome dos cidadãos, com o intuito de servir o bem público. Contudo, o desfecho sistemático do processo eleitoral tem sido a captura do sistema pelos eleitos, com o objetivo de exercer o poder em benefício próprio, da sua corporação e dos seus financiadores. Como conseguem? Se é o cidadão quem os elege, porque lhes permite lesar sistematicamente os seus interesses?
Porque o coletivo do qual depende a vida do indivíduo deixou de ser o clã, a aldeia, a província; é agora a cidade, o país, o Mundo. E o nível de complexidade do cenário político contemporâneo requer um nível equivalente de especialização. O problema é que, se o cidadão deixa de participar diretamente na atividade política, torna-se dependente de quem elege para o representar. É neste contexto que o sociólogo Pierre Bourdieu fala de uma “descontinuidade radical entre ethos e logos”: a dicotomia entre aquilo que o político profissional diz ao cidadão para garantir a eleição – e aquilo que faz uma vez eleito.
Segundo Bourdieu, a delegação de poderes encerra uma armadilha inevitável: reduz o cidadão a um mero consumidor do sistema e obriga-o a um acordo draconiano a favor da classe política, mantido através daquilo que o autor chama de “mentira sagrada” – a construção, pelo político profissional, de um discurso totalmente devotado aos interesses dos seus constituintes. A farsa é suportada pelas altas competências de marketing das máquinas partidárias; e o resultado é que o eleito consegue roubar ao eleitor o espaço necessário para se dedicar – por vezes exclusivamente – aos seus próprios interesses e aos das suas corporações.
Nas democracias maduras, o eleitor aprende a reconhecer os seus reais interesses económicos e sociais; aprende a exigir transparência ao Estado, qualidade aos serviços públicos e consegue impor limites às ambições ilegítimas da classe política, obrigando-a a proteger, ainda que parcialmente, os seus interesses. Contrariamente, em sociedades onde o cidadão não tem as habilitações históricas necessárias para uma participação política eficaz, o eleito sente-se pouco ou nada obrigado a trabalhar para o eleitor. Neste caso, a energia que a classe política consagra aos seus constituintes tem apenas duas vertentes: uma discursiva – dedicada a bajular os anseios e fobias do grande público, garantindo assim a eleição; e outra clientelista – dedicada a sequestrar do Estado os recursos necessários para recompensar os fiéis da sua corporação.
A sociedade.cv enquadra-se obviamente no perfil da democracia imatura, que é reflexo de um perfil histórico-económico deficiente: um passado autoritário recente, um nível elevado de desigualdade social, uma elite política clubista e uma maioria demográfica pobre. Um cidadão em situação de carência aguda simplesmente não tem a opção de pensar a política a longo prazo; vende o seu voto ao político corrupto – seja por dinheiro, cestas básicas, sacos de cimento ou um emprego precário –porque a transação constitui uma oportunidade preciosa de satisfazer necessidades básicas no curto prazo. Se esse cidadão constitui a maioria do eleitorado, a eleição do demagogo e do seu clube está assegurada.
Democracias pobres como a nossa partilham ainda uma agravante letal: economias altamente estatizadas – de oportunidades empresariais raras, ou diretamente dependentes da vontade política. Isto significa, por um lado, que a classe profissional está enraizada na administração pública e sob domínio direto do Estado; por outro lado, que a classe empresarial também se encontra sob controle do Estado, que só lhe concede facilidades consoante a lealdade. Ou seja, o clientelismo eleitoral que seria previsível entre as massas depauperadas torna-se característico também das classes médias e endinheiradas.
Mesmo assim, democracia é democracia; apesar das suas limitações, se a dicotomia entre o discurso e o procedimento do eleito for sentida como radical, o regime oferece-nos periodicamente a oportunidade de mudar de fornecedor. O problema das últimas décadas, no Mundo inteiro, tem sido a desmoralização transversal das estruturas partidárias e a escassez de alternativas credíveis de governação. Mesmo nas democracias consolidadas, o voto tem perdido gradualmente a eficácia como ferramenta de transformação política e económica.
Na nossa democracia, a crença generalizada é de que a utilidade do voto está morta e enterrada; e esta visão é suportada pelas taxas de abstenção astronómicas que caracterizaram as últimas eleições. Eu acredito que o Mundo está simplesmente a viver o fim de um ciclo político e conceptual, onde a democracia liberal deixou de ser um sistema eficaz de representação dos interesses do cidadão. E Cabo Verde faz parte do Mundo.
Temos que encontrar um modelo político mais adequado às necessidades das maiorias – dos sem alimento, sem habitação, sem saúde, sem segurança, sem educação e, brevemente, sem água limpa para beber, ar puro para respirar ou uma praia para nadar. Temos que encontrar um modelo mais resistente à rapina da classe política. Qual? Infelizmente, a célebre sentença de Churchill – que a Democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras – vale agora mais do que nunca. Portanto, enquanto não encontramos uma alternativa válida, temos que ir consertando a máquina; temos que ir atualizando o sistema democrático até isso acontecer. E, quanto a mim, o coração desse processo de reparação é a promoção da cidadania política; o upgrade do cidadão.
Já granjeei bastantes inimig@s com o meu posicionamento sobre o combate à violência baseada no género: que devemos esquecer os homens. As campanhas não podem ser dirigidas ao macho, pedindo-lhe que seja bonzinho e pare de nos espancar; somos adultas e a responsabilidade por não nos deixarmos espancar é nossa. “Homem que é homem não bate”? Mulher que é mulher não apanha. O discurso tem que ser dirigido às mulheres porque a responsabilidade é nossa.
Penso o mesmo do combate à demagogia partidária: esqueçamos os políticos. Paremos de exigir idoneidade a larápios demagogos, cuja única motivação é o interesse próprio, cujo único talento é aldrabar e cujo domínio do sistema torna impossível responsabilizar. Se quem apanha somos nós, quem tem que dar um basta na violência somos nós; porque, tal como um marido violento, a classe política profissional não tem nenhuma razão para parar de nos espancar. Somos eleitores em democracia e a responsabilidade pelo nosso bem-estar é nossa. Esqueçamos os políticos. Falemos de nós.
Infelizmente, paira uma nuvenzinha chata sobre esta decisão bonita de falar apenas de “nós”: é que numa democracia – o regime menos pior – o poder executivo é a única via para a transformação efetiva do status quo. Só acede ao poder executivo quem compete no embate eleitoral; só competem no embate eleitoral organizações políticas devidamente formalizadas; e só costumam ganhar as altamente capitalizadas. É esta a encruzilhada. Mesmo quando organizações íntegras se apresentam às eleições, não têm acesso ao avultado capital dominado pelas elites partidárias e raramente atingem um resultado eleitoral transformador.
Mas o quadro global está a mudar, tanto para bem quanto para mal. Na Europa, os partidos centro-socialistas e democratas-cristãos, os guardiões do poder desde o pós-guerra, estão a perder terreno a passos largos para organizações mais radicais. Organizações dos dois extremos do espectro político – nacionalistas à direita e ambientalistas à esquerda – estão a aumentar a sua representatividade em todos os fóruns. Ou seja, a tentar consertar a máquina segundo um conceito que foi progressivamente perdido: a ideologia. Talvez seja essa a solução: trazer a ideologia de volta à política, onde ela foi substituída pelo peculato e pela demagogia. Temos é que ter o cuidado para que a ideologia seja equitativa e não abusiva; democrática e não autoritária; inclusiva e não exclusivista; de interesse público e não corporativo.
A sociedade contemporânea foi amamentada pelo cinismo da classe política e das suas corporações partidárias; é natural que se ria à mera sugestão de que é possível imbuir o serviço público de altruísmo. Mas o facto é que não seria inédito; e se as tentativas históricas de moralização da política falharam ciclicamente, isso só aconteceu porque antes de falhar, sucederam; porque a eficácia de todas as revoluções tem um prazo de validade; e porque, entre as revoluções, a máquina democrática necessita de manutenção.