Dei por mim, esta madrugada, a reler pela enésima vez o romance Chiquinho. Tenho destacado, ao longo dos anos, a segunda parte, pois fala de São Vicente, e os meninos reagem positivamente quando confrontam a sua vivência com a dimensão sócio histórica e cultural do romance. Decidi agora, depois de uma conversa com um amigo de São Nicolau, enfatizar a terceira parte, “As águas” em São Nicolau. Entender o drama da chuva, num passado que nos enformou e que não se repetirá.
Por: João Delgado da Cruz
Sou, entretanto, amiudamente interrompido por mensagens que chegam ao meu tablet. Chega um vídeo de um aluno. Um vídeo extraordinário, genuíno. Uma senhora de Tchã d’Ti Liza é questionada pelo jornalista sobre a sua zona residencial “Sô um dzê bo te corrê. Un te bem de Tchã d’Ti Liza. … Que lá ê um zona perturbôde”. Rio agradavelmente, durante longos minutos, e interrompo a leitura.
Recomposto desse momento, retomo a minha conversa com esse Chiquinho que regressa à ilha natal, depois de se tornar um “mucim de soncente”. Já não é aquele Chiquinho do Caleijão e sente isto na alma e na conversa dos mais velhos:
“Sinto que todos me olham com desconfiança. Não que tenham ódio. Não há aqui na Vila a força tónica que produz o ódio. Vou algumas vezes ao Terreiro, à noite, e oiço a conversa dos mais velhos. Mas eles não me falam directamente. Vêm com uns desvios de linguagem em que se sente uma experiência secular de exprimir o pensamento sem o compromisso do corpo-a-corpo corajoso das opiniões desassombradas. (…) Que discutem eles, à noite, nos bancos dorminhocos do Terreiro? Não discutem nada. Falam imperceptivelmente, sob a sombra confidente do busto do Dr. Júlio. Baixinho, que as paredes têm ouvidos…”
Paro de novo, a imagem e as palavras da senhora de Tchã d’Ti Liza perseguem-me hilariamente. Esqueci-me da saída programada, a música em Casa da Morna fica para outro dia.
Resolvo escrever este texto, quero registar mais um momento de felicidade. Sou feliz, por momentos. Momentos que se tornam cada vez mais frequentes. Tive vários sonhos, mas confesso que gostar de Literatura e ser professor de Literatura é o máximo que eu podia atingir nesta vida.
Os textos misturam-se na minha mente: os desvios de linguagem são dos velhos, da senhora de Tchã d’Ti Liza ou de Chiquinho?
Sou invadido pelo ímpeto pedagógico, relaciono tudo com a sala de aula. O professor não é um cidadão normal. Podia falar de tudo isto sem explicar, inferir, sem retirar a genuinidade. Mas, é mais forte do que eu. Como é que Tchã d’Ti Liza pode ser “perturbôde”? Os bancos podem ser dorminhocos? Os velhos evitam o corpo-a-corpo com desvios de linguagem? Falam imperceptivelmente, sob a sombra confidente do busto do Dr. Júlio? Faço as inferições, pois tenho de explicar aos meninos que não conseguem ver estes desvios à primeira.
Recorrem à HIPÁLAGE, que é uma associação de uma palavra à outra, à qual não convém semanticamente. Uma das formas mais frequentes consiste na atribuição, a um substantivo, de uma qualidade (adjetivo) que, em termos lógicos, pertence a outro.
A hipálage é um recurso de grandes escritores, desde Ovídio “Os meus punhos tristes feriram o meu peito nu”, passando por Eça de Queiroz “Fumava o pensativo cigarro”, até Chico Buarque “A moça dormia transparente”.
Esta figura está intimamente ligada à alusão, à metonímia e à sinestesia e foi abundantemente utilizada no Classicismo e no Realismo.
Os velhos dizem coisas graves de forma suave com sabor à terra, recorrem a artifícios de linguagem secularmente fossilizados na nossa cultura. Fazem confidências à sombra do busto do Dr. Júlio.
A senhora de Tchã d’Ti Liza fala de perturbações na sua zona e assume a ignorância do jornalista perante o facto. Chiquinho refere a bancos que as pessoas usam para dormir.
Ou sou eu que estou perturbado pelo sono que começa a chegar…