Nicolau Andrade Fontes*
O tema em tela, devido a existência na atualidade de múltiplos meios tecnológicos para a captação e difusão de imagem, leva a que o escrutínio da ação policial seja realizado de forma mais intensa. Neste sentido, o registo de imagem tem vindo a ser objeto de variadas abordagens operacionais, interpretações e enquadramentos jurídicos, que urge uniformizar e garantir que respeitam integralmente a legislação em vigor.
A Constituição da República de Cabo Verde (CRCV), integra o direito à imagem no seu catálogo constitucional dos direitos, liberdades e garantias fundamentais pessoais, mais especificamente no artigo 41 nº 2, da CRCV. Com epigrafe direito a identidade, à personalidade, ao bom nome, à imagem e a intimidade, enquanto o Código Civil (CC) prevê este direito no artigo 77 º (direito a imagem). Ao nível penal, a tutela de imagem, enquanto bem jurídico autónomo, é prosseguida pelo artigo 184º do Código Penal (CP) (gravações, fotografias e filmes ilícitos).
O direito à imagem deve ser analisado em consonância com a liberdade de expressão e de informação, nos termos do artigo 48º da CRCV. Apesar de basicamente gémeas, a liberdade de expressão e a liberdade de informação são duas dimensões distintas do direito de liberdade. Foram ambas consagradas no artigo 48º, correspondendo o paragrafo 1º a liberdade de expressão e o 2º a liberdade de informação.
Em traços muito genéricos pode-se dizer que a liberdade de expressão é uma liberdade de manifestação de pensamentos (a expressão constitucional utilizada é de ideias), que pode ser feita de diversas formas. Não só pela palavra, mas igualmente por comportamentos ou ainda pelo próprio silêncio, e a liberdade de informação consubstancia-se numa liberdade de propagação de factos, acontecimentos e ideias, apresentando-se de modo pluridimensional como uma liberdade de informar, de ser informado e de se
informar.
Ambas naturalmente estão submetidas a limites imanentes previstos pelo próprio artigo 48º CRCV, nos seus números 4 e 5, são claramente suscetíveis a restrição legal com o fim de as harmonizar com outros direitos fundamentais e interesses públicos legítimos, designadamente por via da responsabilização penal, civil e administrativa.
Nesta senda, queremos trazer à colação e transpondo esta temática para o campo Policial e para a preservação do direito à imagem dos elementos policiais, conhecer e perceber até que ponto o direito a imagem dos elementos policiais em serviço pode ser restringido em consequência das funções que desempenham.
A resposta à pergunta de partida engloba em si uma complexidade, que tentaremos descodificar de forma a podermos explanar como devem os elementos policiais atuar perante a captura de imagem pelo cidadão a sua ação em serviço. Neste sentido, é importante aprofundar esta temática, tentando perceber quando é que é licita ou ilícita a captura de imagem de um elemento policial em serviço por parte do cidadão.
É necessário perceber quanto é que o direito à imagem do elemento policial em serviço pode ser restringido e que direitos se sobrepõem a este direito: o direito à informação deve em todas as situações sobrepor-se ao direito à imagem? Até que ponto o direito à imagem de um polícia pode ser limitado pelo interesse publico?
Enquadramento legal
O enquadramento legal do direito à imagem no ordenamento jurídico cabo-verdiano é fundamental, para podermos compreender o seu valor na atualidade e no quotidiano dos cidadãos. A Constituição da República de Cabo Verde (CRP) consagra no seu artigo 41 nº 2 o direito à imagem e, no art. 48º, o direito à liberdade de expressão e de informação como um direito fundamental pessoal. Incorporando por sua vez no seu leque de direitos, liberdades e garantias fundamentais pessoais. Enfatizando a importância deste artigo, o código civil (CC), artigo 77, com epigrafe direito à imagem.
Relativamente a proteção do direito à imagem pela lei penal, enquanto bem jurídico autónomo da privacidade/intimidade, esta é realizada através do artigo 184º do Código Penal (CP), que prevê e pune o crime de gravações, fotografias e filmes ilícitas. Nesta senda, Vânia Jacinto entende que ”a existência desta tripla proteção do direito à imagem não determina, contudo, uma exigência de cumprimento das regras de cada ramo do direito sem atender aos demais. A unidade da ordem jurídica reclama, pelo contrário, que se interprete e se aplique as três vertentes de proteção conferida no direito à imagem como um todo, nomeadamente quando está em causa um possível ilícito criminal”.
O direito à imagem, para além da sua previsão na Constituição no seu artigo 43 nº 2
no CC no artigo 77, tem tutela jurídico-criminal: artigo 184º do CP. Consideramos como bem jurídico criminal, na linha de Germano Marques da Silva, ”o interesse ou bem que a norma penal incriminadora protege”. O autor menciona ainda que o “elemento da norma penal é também o bem jurídico por ela tutelado, pois o facto há de ser necessariamente um facto socialmente danoso, um facto que se lese ou
ponha em perigo de lesão um bem jurídico”. No mesmo sentido, Hans Welzel menciona
que bem jurídico ”é um bem vital da comunidade ou do individuo, que pelo seu significado
social é protegido juridicamente”.
Para Roxin, e de acordo com a sua conceção de cariz constitucional, os bens jurídicos definem-se pelas “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma
vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada uma na sociedade
ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos”.
Neste âmbito, e segundo Germano Marques da Silva, pelo facto de a pena criminal afetar bens de cariz pessoal protegidos pela Constituição como é o caso da liberdade, “o recurso a pena só encontra justificação se tiver por finalidade a tutela de bens socialmente dotados de relevância constitucional”.
Pela análise feita sobre o bem jurídico em causa, resta nos agora trazer a essa
temática a realidade da atividade Policial. Como podemos constatar, a atividade policial desenrola-se sobretudo na via publica ou em locais abertos ao p]ublico, e decorrente desse facto sucede que os profissionais de polícia estão constantemente expostos aos inúmeros dispositivos tecnológicos que os
cidadãos possuem.
A atividade policial está sempre associada a momentos importantes a nível social, o que será naturalmente acompanhado e registado através dos múltiplos e diversificados meios de captação de imagem existentes atualmente, sendo que o universo policial deverá estar ciente de que o desempenho das suas funções vai ser alvo de fotografias e vídeos captados por qualquer cidadão.
No entanto, e como já explicitamos, o facto de ser o uniforme que identifica os elementos policiais enquanto tal, não afasta a ilicitude daqueles que, através da sua conduta, pretenderem exclusivamente registar e/ou divulgar imagens de elementos policiais focando o seu rosto ou outros aspetos físicos distintivos da sua pessoa.
Agora vejamos em que circunstância isso não consubstancia crime.
O Código Penal prevê causas de exclusão de ilicitude e da culpa, que serão trabalhadas e desenvolvidas para compreendermos de forma mais profunda a aplicabilidade do artigo 184º do CP. Começando pela análise as causas de exclusão da ilicitude, esta leva nos aos casos em que existe consentimento por parte do visado (da fotografia ou filme) para captura de imagem. Neste sentido, não existira lesão a bem jurídica imagem, pois a captação da imagem, exposição ou divulgação foi efetuada com permissão do visado.
Como refere Costa Andrade “a concordância do portador do bem jurídico vale aqui como acordo que o exclui-tipo”. Nesta ótica, a restrição do direito fundamental à imagem foi consentida, portanto não se pode considerar que estamos perante uma fotografia ilícita. Não existe o tipo legal crime pelo artigo 184 nº 1.
Outro caso em que a tipicidade é excluída ocorre quando o titular da bem jurídica imagem, através do acordo expresso ou presumido permitir a captura da sua imagem. Temos acordo presumido quando o visado, sabendo que está a ser fotografado ou filmado não se opuser ao registo da sua própria imagem, conforme o artigo 185º do CP.
O artigo 77 nº 2 do CC possui também causa de exclusão de ilicitude que se aplica, por força do art.º 35 alíneas a,b,c,d,e e) do CP, a incriminação prevista no artigo 184º do CP, visto que a prescrição normativa e respeitante de forma direta ao direito à imagem.
Refere Paulo Pinto de Albuquerque (in comentário do código penal, Universidade
católica Editora, 2ª Ed., p.780) que “os particulares e as autoridades não judiciárias podem
também realizar gravações, fotografias e filmes a coberto de legítima defesa, como sucede
por exemplo quando sejam vítimas de crimes contra a liberdade pessoal ou a liberdade
sexual”.
Neste sentido, o artigo 35 a) do CP prevê a legitima defesa como uma causa de exclusão de ilicitude, que tem a aplicabilidade, por força do artigo 36º do Código Penal. Refere ainda o referido autor que “os particulares podem, em estado de necessidade (defensivo), devassar a privacidade de terceiros e, por maioria da razão, fazer gravações e fotografias que não devassem a privacidade de terceiros com vista a obter provas para efeitos judiciais e, designadamente, criminais (acórdão do TEDH la flor Cabrera v. Espanha, de 27.05 2014, sobre um vídeo de imagens do réu na rua feito por uma agência de detetives privados a pedido de uma campainha de seguros para junção num processo cível”.
Nesta perspetiva, o artigo 35º alínea b), conjugado com o artigo 38º, ambos do CP prevê o estado de necessidade como uma causa de exclusão de ilicitude. Portanto, face toda a explanação feita, de acordo com a doutrina e jurisprudência maioritária, o direito à imagem tem de ser analisado entre as três perspetivas, isto com base no artigo 43 nº 2 da CRCV, 77 nº 2 CC e 184 do CP. Neste sentido só não constitui crime quando a imagem capturada por qualquer particular é utilizada no caso da legitima defesa e estado de necessidade, conforme o artigo 36º e 38º do CP.
Realça ainda o Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora,2ª Ed., p. 780) que “quando não se verifiquem os requisitos de estado de necessidade, as gravações e fotografias feitas por particulares para fins judiciais (“exigência de Justiça”) podem ainda justificar, sim, com base no artigo 77 nº 2 do CC. Por exemplo, não comete crime quem tira fotos do marido numa festa de casamento de um amigo deste para juntar a ação de divorcio (acórdão do TRP, de 1.10.2011). Aliás, pode ser mantido num processo penal por “exigências de Polícia ou de justiça”, a imagem de terceiro, não indiciado como suspeito, que foi, juntamente com outras fotografias de
figuras públicas, utilizada sem seu consentimento, durante o inquérito, para identificação pelas vítimas de suspeito que são arguidos em processo penal ainda sem decisão transitada em julgado (acórdão do TC nº 81/2007, sobre a constitucionalidade do art.º 79, nº 2 do CC, quando interpretado nesse sentido)”.
Conclusão
O nosso entendimento é que estamos perante conflito de diretos fundamentais,
entre o direito a imagem, a liberdade de expressão e de informação, conforme os artigos 41
nº 2 e 48, ambos da CRCV. Sendo assim nas palavras de André Ramos Tavares “tem-se de considerar que os direitos humanos consagrados e assegurados, não podem servir de escudo de proteção para prática de atividades ilícitas não servem para respaldar irresponsabilidade civil, não podem anular os demais direitos igualmente consagrados pela Constituição, não podem anular igual direito das demais pessoas, devendo ser aplicados harmonicamente no âmbito material”.
Portanto, ficou claro na demostração feita que o particular poderá capturar a imagem do elemento policial no serviço deste que se encontra em estado de necessidade ou legitima defesa, pelo que a doutrina e jurisprudência são unânimes neste sentido.
*1º Subchefe da Policia Nacional.