Por: Alcides Lopes (PhD)
Dedicado às mulheres guineenses pelo seu dia I prinsipalmenti pa bideras i rabidantes.
Trago vívidos, nas memórias de infância, os desfiles, as canções de revolução e as frases de efeito que quando crianças da escola primária aprendemos para as celebrações oficiais do dia dos Heróis Nacionais e do dia das Crianças em Cabo Verde.
Quando eu tinha oito anos de idade, frequentei a segunda classe primária na Escola Residência na Vila do Porto Novo, ilha de Santo Antão. A escola tinha esse nome porque as salas de aula ficavam numa ala posterior ao edifício que servia de residência de pouso para as visitas oficiais dos quadros do governo e das figuras políticas de então.
Estávamos no ano de 1983 e, na ocasião do dia das crianças, realizou-se o desfile cívico, ao longo do qual os alunos da primeira à quarta classe participaram ordeiramente. Na frente, seguia uma estátua de um aluno sorridente, calções azuis e camisa amarela, sentado numa carteira e escrevendo no seu caderno. A figura se encontrava fixa num atrelado que, por sua vez, era empurrado por alguns homens. Curiosamente, lembro-me que a estátua era de um menino estudante negro, nariz largo, olhos grandes amendoados e lábios grossos e encarnados. O seu cabelo era feito de grãos de milho que foram torrados até ficarem queimados e, posteriormente, colados – um por um-, à sua cabeça.
Enquanto seguíamos pela Avenida Amílcar Cabral cantávamos e, de vez em quando, emitíamos, em uníssono, frases de efeito atribuídas à Honra e Glória dos Heróis Nacionais. Geralmente, as iterações saudavam nomes como Domingos Ramos, Eduardo Mondlane, para além de A. Cabral, o Presidente da República Aristides Pereira e o Primeiro Ministro Pedro Pires, intercalados pela interjeição “Viva”. Mas, também saudávamos Titina Silá e Indira Ghandi. E, como crianças, identificamo-nos com esses nomes, na medida em que aprendemos que várias mulheres e homens haviam tombado heroicamente numa guerra através da qual o destino do país foi decidido e, Cabral, martirizado.
Acredito que as minhas ilações, até o momento, despertam um determinado tipo de saudosismo político que periga provocar interpretações romantizadas sobre uma época na qual, segundo Casimiro Pina, vivíamos basicamente “uma ditadura do partido único.” Certamente, a nossa geração, enquanto criança, escutou as conversas sorrateiras e os sussurros que escorriam entre os cômodos sobre as histórias de aprisionamento, tortura, desaparecimento e assassinatos ocorridos na ilha de Santo Antão durante a Reforma Agrária.
Entretanto, não podemos nunca olvidar o peso da severidade e da insegurança alimentícias entre outras carências estruturais pelas quais a população das ilhas foi fustigada durante o século XX. Vinte e um anos de fome explícita foram suportados em apenas três quartos do século passado. Minha opinião franca é que, em 1983, éramos apenas uma população sobrevivente de uma forma de imperialismo português secular, pernicioso, abusivo e genocida. O qual, foi capaz de mobilizar uma guerra, cruel e voraz, contra inúmeras regiões e grupos populacionais do continente africano, causando centenas de milhares de vítimas mortais direta e indiretamente.
Foi precisamente na Guiné de Cabral e PAIGC, a mais subestimada entre as negligenciadas colónias portuguesas na África, aquela região com o menor valor estratégico, onde Portugal encontrou o seu Vietnam. Foi naquela terra quente, pantanosa e abafada, pelo mormaço húmido, que milhares de jovens portugueses mataram dezenas de milhares de africanos, na sua própria terra, e morreram sem ao menos saber por quais razões estavam a lutar contra uma revolução genuína.
Por sua vez, foi igualmente nas matas da Guiné onde uma luta revolucionária, integrada a uma arrojada campanha de educação militante, foi posta em andamento e transformou, de forma decisiva, a consciência democrática de várias populações através de uma guerra anticolonial que provocou a queda do regime fascista português, acabando assim com um regime colonialista secular, no dia 24 de setembro de 1973 na Guiné, e com uma ditadura fascista estabelecida desde 1926, no dia 25 de abril de 1974 em Lisboa, Portugal.
Da mesma forma, como se fosse um milagre, aquela terra tropical quente e úmida gerou a menina sorridente de olhos pequenos e determinados, a quem foi posto o nome de Ernestina Silá, no ano de 1943 em Tombali. Eu gosto de imaginá-la como uma garota sagaz, inquieta e líder das missões imaginárias de exploração de tesouros nas entranhas do dragão. Seguida copiosamente pelos meninos ao subir uma árvore alta, se jogar de falésias ao rio, nas cachoeiras para banhar-se, jogar bola, andar de bicicleta pelas ruas e vielas da sua cidade. Sempre rasgando e abrindo sorrisos. Aquele sorriso contagioso, penetrante e capaz de desarmar um tanque de guerra.
Mas, ao mesmo tempo, imagino Titina Silá como uma detentora de inteligência e sentidos aguçados. Atenta às percepções de desigualdades e convenções absurdas impostas às mulheres na sua sociedade, às proibições e os limites estruturais decididos unilateralmente pelo sistema hetero-patriarcal colonialista europeu. Tanto era que, aos dezoito anos de idade, Titina ingressou nas fileiras da militância para o PAIGC. Na sequência, em 1963, seguiu para a então União Soviética onde fez estágio político.
De volta a Guiné, liderou uma formação durante a qual treinou uma centena de mulheres sobre os detalhes estratégicos e as razões da luta. O objetivo consistia em esclarecer os motivos pelos quais era necessário combater contra a dominação e o jugo estrangeiro. Pois, durante a revolução, estava assente que antes do combate frontal com o inimigo, a luta primeiramente devia acontecer ao nível consciente e prático no confronto dos próprios limites individuais. Pela conquista de objetivos práticos com resultados necessariamente satisfatórios.
A curta e significativa trajetória de vida desta guerrilheira, das trincheiras da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, de apenas trinta anos, tem muito a nos ensinar, quando quisermos e tivermos serenidade para revisitar o seu espírito indomável. Titina era um agente de empoderamento, uma fortaleza de espírito. Vislumbrava uma revolução dentro de uma revolução, a emancipação e o reconhecimento de todas as mulheres africanas e da diáspora negra, fossem bideiras ou rabidantes. De Cabral, ouvir-se-ia que a companheira Ernestina era uma lutadora incansável, amável, simples, uma pessoa excepcional e uma grande patriota. Quis o universo que riscasse o firmamento como um cometa, mas do seu rastro luminoso emana uma incansável esperança.
A historiadora brasileira Joice Berth defende que os estudos e reflexões realizados em torno dos efeitos, tanto individuais quanto coletivos, acumulados durante séculos de exploração, alienação e aliciamento de pessoas sustentam-se através de um entendimento quase intuitivo de poder. Por sua vez, quando analisamos a situação a partir da perspectiva daqueles que sobrevivem diariamente às intempéries do sistema de opressão e dominação presentes em suas vidas, a intuição do poder reveste-se de um viés negativo, ou no mínimo com alto potencial limitador da mobilidade social e jugo daqueles que não o têm.
A guerrilheira Titina Silá caminhava por este campo minado e elusivo com a firmeza de uma líder. Ela sabia que o empoderamento das mulheres dentro da estrutura da luta da libertação era essencial para a sua realização social futura, por isso ela se encontrava na frente de luta – dianti na luta.
Conta-se que quando a notícia da morte de Cabral aportou as ilhas, fez-se um silêncio que até o mar receava avançar sobre os rochedos. Um silêncio sepulcral que doravante precisa ganhar voz. Por sua vez, na Guiné as agitações sacudiram Bissau e outras regiões com a notícia do seu desaparecimento físico. Contudo, pergunto-me como terão reagido as populações da Guiné quando souberam de mais esta fatalidade?
Em 30 de janeiro de 1973, dez dias após o atentado que matou Cabral, Titina Silá e demais companheiros foram emboscados por militares portugueses na travessia do Rio Cacheu. No momento da sua morte, Titina se dirigia ao funeral do seu líder revolucionário na Guiné Conacri. Morreu a meio caminho de uma vida. Com apenas trinta anos de idade, fora brutalmente arrancada, com perversidade desmedida, do convívio desta dimensão.
Hoje, quando dirijo um olhar crítico à história da nossa democracia, é inevitável não me decepcionar com a forma como temos malogrado, em grandes decepções, os esforços de Cabral, de Silá e de tantas outras pessoas comuns que realizaram feitos extraordinários e doaram seu amor e suas vidas para que aquelas crianças do início deste texto, em 1983, pudessem ter uma chance. E hoje, é incontornável o facto de que estamos falhando em atender as necessidades básicas das nossas crianças e adolescentes. Seja no alcance da vacinação; no direito à educação, à atividade física; como também, no direito às condições básicas de saúde para o crescimento saudável física, espiritual e mentalmente.