Por: José Fonseca
Quando o deputado do partido português da extrema direita “Chega!” sugeriu que se deportasse a deputada preta Joacyne Katar Moreira para a “sua terra”, em função da sua cor de pele; ou quando esse mesmo deputado, instigando o ódio no Parlamento, referiu que os ciganos tivessem um tratamento diferente da restante população relativamente as normas sanitárias decorrentes do estado de emergência, decretado em consequência da situação de pandemia pela COVID19, o Primeiro Ministro dos portugueses, António Costa, imediatamente posicionou-se, de forma incontestável, pela defesa dos Direitos Humanos que, sem qualquer dúvida, haviam sido, nos dois casos, ameaçados.
Era necessário impor limites! Era necessário que se desse um basta àquele tipo de situação e ao deputado, pois, enquanto primeiro ministro, não pode admitir que valores fundamentais da democracia e da boa convivência sejam ameaçados e perigados de forma alguma.
Por cá, seria expectável que o nosso primeiro ministro também tivesse tido uma atitude de salvaguarda de tais direitos e de posicionamento em defesa dos cidadãos ameaçados pelo tal deputado “200%” homofóbico e misógino. E assim, inequivocamente, impusesse e reafirmasse os limites da vergonha e do respeito, demarcando o seu governo de tão ignóbeis afirmações do seu deputado (e, então, secretário-geral do MPD). Optar por ignorar ou fazer pouco caso não pode ser opção face a uma ameaça à dignidade e à própria vida de cidadãos.
Mas, se o nosso primeiro ministro (PM), Ulisses Correia e Silva, face à declaração proferida em praça pública, ao não defender os cidadãos cabo-verdianos, optou por ser cúmplice de tal expressão de ódio, frisando – ao ser abordado sobre o assunto, pela comunicação social – a liberdade de expressão e direito de opinião do deputado, é porque, entende-se, o nosso PM se identifica com o pensamento e posicionamento daquele ainda deputado, ao invés de condenar o incitamento ao ódio e à perseguição de seres humanos.
Recorde-se que o tal de deputado escudou-se em fundamentações bíblicas que descrevem a mulher como sendo um objeto [sexual] que tem a função de “uso” pelo macho varão, como também condena à morte a população LGBTQIAP+ e os ativistas por Direitos Humanos. Ora senhor PM, o argumento de “direito à liberdade de expressão em poder verbalizar livremente as suas crenças” deixa de ser um direito fundamental e cívico quando tem o propósito de ameaçar e cercear Direitos, Acessos, Liberdades e Garantias – incitando o ódio a vidas humanas ao tratar cidadãos como sendo inferiores (quer seja em função de raça, de género, do sexo, da orientação sexual – condições humanas e não opções de vida). Neste caso, trata-se sim(!) do uso despótico de quem entende ter poder absoluto para julgar, condenar e subjugar a vida de outro, por considerar que tal vivência não seja digna de humanidade. Mormente se quem julga e condena for titular de cargos de influência pública e política na nação.
É castrador e limitativo da sã convivência humana em sociedade uma pessoa pensar que o seu direito de crença religiosa ou de “expressão” deverá superar o Direito de Ser de outro. O direito à crença religiosa nunca deve servir para ostracizar e justificar a negação de Direitos Humanos fundamentais.
Ao não condenar tal posicionamento, o senhor PM legitimou um deputado/político como intocável que pode fazer o que quer, descurando a Ética, a seriedade e o respeito para com os demais, porque sente que está legitimado na sua “bex”; e ao permitir que esse deputado continuasse impávido e sereno nas suas lides e “direitos” de função, sem se dignar vir ao público retratar-se, sublimou as suas palavras de ódio e de vilipêndio.
Lembre-se, senhor PM, que o que legitima, institucionaliza e estrutura as ações de ódio são, principalmente, os discursos de ódio proferidos por políticos e por quem tem poder, suportados hierárquica e ideologicamente pelas suas corporações e hastes. Tanto legitimou ações de ódio que – para além da homofobia e transfobia que sempre existiu nas escolas, famílias, religiões e comunidades – em outubro último, um jovem LGBTQIAP+ foi espancado em São Vicente, podendo ter sido, alegadamente, uma violência fomentada pelas declarações de ódio proferidas pelo tal de deputado e apoiado pelo nosso Primeiro Ministro.
Postura semelhante [ao do deputado] teve o ex-presidente dos EUA Donald Trump para com as deputadas, por serem mulheres e de diferente nacionalidade; na mesma senda, as afirmações de ódio do presidente do Brasil relativamente ao povo preto, as mulheres e a comunidade LGBTQIAP+. “Lideranças” reconhecidas como ultraconservadores, fascistas e de extrema direita, com posturas sustentadas em ideais de ódio e de desumanidade, de desrespeito aos direitos e valores humanos, e que têm fundamentado e legitimado ações de ódio e de preconceito pelo mundo. Nos países onde imperam tais preconceitos, as pessoas e as minorias-alvo vivem num quotidiano estado de morte programada, sob uma violência direcionada que mata e viola – física, mental, emocional, profissional e socialmente – centenas de milhares de jovens negros e LGBTQIAP+, de mulheres e meninas. Mas que, no fundo, se traduz na legitimação de um genocídio que subtrai vidas a cada segundo. É este o “caminho seguro” que tem prometido, senhor primeiro ministro?
Analogamente, usando de referências religiosas, pergunto ao senhor PM: qual o “Deus” que aprova isto? Qual a serventia humana e ética de um “direito à liberdade de expressão e de opinião” que tem por objetivo tirar o Direito à Liberdade, à Expressão, à Vida de Cidadãos? – Era esta a tão propalada e prometida solução de felicidade em que nós os cabo-verdianos investimos a nossa confiança em 2016? Era para dar voz, vez e lugar a neofascistas e facínoras (como vimos testemunhando ultimamente)? Trata-se do reflexo da vossa aproximação ideológica com um partido de extrema-direita, o Chega! [conforme descobriu-se recentemente], que tem justificado os posicionamentos desse governo em matérias que são tão caras a um Estado de Direito?
Por causa de discursos de ódio institucionalizados e legitimados é que em países como o Brasil a cada 20 horas uma pessoa negra e LGBTQIAP+ é assassinada. Será que é esse tipo de exercício de poder que os cabo-verdianos querem que vigore nos próximos 5 anos? Que se legitime que “em nome do seu Deus” se comece a matar cabo-verdianos em função da sua orientação sexual e identidade de género? É essa a imagem que se quer de Cabo Verde nos próximos anos?
É que ameaças orquestradas [por quem, por inerência do cargo deveria defender a vida humana acima de tudo], mesmo em redes sociais são reais, não podem ser simplesmente ignoradas, ou, travestidas de “direito de opinião ou liberdade de expressão”. O discurso de ódio não deve ser minimizado – é potencialmente assassino e produz vítimas!
Da parte da nossa sociedade civil o silêncio não deve ser a resposta! Há que neutralizar os desvarios de uma direita que periga se declinar para o extremo no que tange a salvaguarda e defesa de valores e Direitos Humanos, sob pena de se naturalizar e legitimar esse tipo de pensamento que toma corpo nas escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades, nas famílias, nas igrejas. Alertar e repudiar toda a LGBTfobia e a violação de Direitos Humanos.
Estamos todos de acordo que os cabo-verdianos merecem uma classe política representativa e governável que, de facto, proteja a TODOS os cidadãos. Teremos opção? Existe esta possibilidade em Cabo Verde? No próximo dia 18 de abril pensemos bem sobre qual das opções partidárias estão efetiva e ideologicamente inclinadas a cumprir este desiderato de entender que é papel do Estado zelar para que nenhum cidadão, em nenhuma circunstância, seja julgado na sua intimidade ou questionados nos seus Direitos, Acessos, Liberdades e Garantias.
Seremos todos hipócritas se nos dizermos afetados por ações racistas, machistas, homofóbicas e misóginas, mas com a mesma mão que condenamos tais atos votarmos em quem já mostrou que suporta, apoia e justifica quem perpetua tais discursos de ódio. É momento de se dar um chega!!