Frágil. Sinto-me frágil

Por: Antónia Môsso       

Cátia não era apenas mãe de três seres. Era mulher, irmã, filha, amiga, de pessoas que se viram abruptamente privadas da sua existência. Cátia era uma vida. Perdeu-a em fevereiro do ano passado quando, ao serviço da Câmara Municipal de São Vicente, caiu mortalmente da carrinha usada para transportar os seus trabalhadores.

Ainda trago comigo o aconchego do abraço de Dylan Rafael. Tenho os seus bracinhos infantis ao redor do meu pescoço, e os 3 anitos do seu corpo frágil apertando o meu. De início, foi o acanhamento habitual de criancinha. E aquela já esperada hesitação na resposta de como se chamava.

Generoso no abraço. Poupado de fala. Dylan, acabara de me conhecer. Normal. Dylan Rafael, sorriu meio encabulado. Uma alegria inocente explicada por quem ainda não tem idade para se aperceber das mudanças na sua vida. Quando somar mais uns anitos, vai perceber tudo. Até lá, espero que tenha encontrado alguém para lhe dizer que sua mãe virou uma estrela e que está ali no céu a velar por ele e pela família. De regresso a casa, desamarrei as cordas que prendiam as minhas lágrimas. E chorei, por ele e pela sua família.

Cátia não era apenas mãe de três seres. Era mulher, irmã, filha, amiga, de pessoas que se viram abruptamente privadas da sua existência. Cátia era uma vida. Perdeu-a em fevereiro do ano passado quando, ao serviço da Câmara Municipal de São Vicente, caiu mortalmente da carrinha usada para transportar os seus trabalhadores. Carrinha desprovida de qualquer segurança e, pelo que consta, sem seguro, sem inspeção técnica. Uma “carrinha selvagem”, se assim preferirmos chamar, transportando o que se tem de mais valioso: vidas humanas. Circulando à vista de todos nós e de todas as instituições cujo ofício é garantir a segurança e a proteção de pessoas e bens.

Destroçada tanto emocionalmente como financeiramente, a família aguarda por alguma “justiça” e amparo de instituições sociais (que duram a chegar). O que se perdeu já não se restitui, e não falo só de vida.

Como se explica tudo isto? Não há explicação suportável. Mas aprendemos a legitimar o absurdo com argumentos bafientos.

 Porque somos pobres e faltam recursos? Os recursos nunca serão suficientes. Desperdiça-se um tempo obsceno a falar dos recursos que não temos, quando a tónica devia ser colocada no que fazemos com os recursos que temos. Sim. Como gerimos o pouco que temos. Determinar o que é prioritário é uma questão ética. Se gerirmos com pouca proficiência o que temos deve ser porque ainda é exangue a nossa relação com a competência (técnica, intelectual e moral).

 Ou, porque temos uma cultura de incumprimento das leis e normas instituídas? E nada se pode fazer porque a cultura é assim. A cultura, segundo o antropólogo inglês Taylor, será o todo complexo em que se incluem os conhecimentos, as crenças, a arte, o direito, a moral, os costumes, e todas as aptidões e hábitos que o homem adquire como membro de uma sociedade.

Nós não somos apenas meros portadores da cultura, mas também produtores e transmissores dela. O que significa que a cultura é dinâmica. E constitui uma imprescindível ferramenta  para o desenvolvimento de qualquer país.

Já Amílcar Cabral alertava para não tomarmos a nossa cultura como um legado que deve ser preservado simplesmente por ser nosso. Defendia uma atitude reflexiva e autocrítica da cultura. Se já chegamos até aqui como povo e sentimos que há aspetos na nossa cultura que não estão a resultar, que constituem inclusive empecilhos para o bom funcionamento do nosso ecossistema humano e natural, e um handicap para evoluir, porquê não passar a fazer diferente? Transformar determinados costumes? Investindo ativamente em valores pessoais e institucionais que contribuem para o avanço humano. O respeito pela vida (humana ou não), responsabilidade, honestidade, solidariedade, fiscalização /controlo/ sanção, e consequentemente, ordem. Criando as condições propícias para que cidadãos e instituições da nossa sociedade cumpram e façam cumprir com isenção as leis.

Zelar pela observância das leis e das normas sociais é uma forma do Estado cuidar da população. Se calhar, a forma mais eficaz, de proteção e manutenção da sociedade.

Dylan Rafael e seus irmãos um dia vão crescer. Mas a minha vontade é que cresçam como deve ser. Saudáveis. E que sejam felizes, apesar do irreparável desfalque nas suas vidas. Merecem viver numa sociedade acolhedora, coesa, com bons princípios e que saiba cuidar bem de todos os seus membros. Numa sociedade cuja cultura não admita que nenhum ser humano, sob a responsabilidade de uma entidade como a Câmara Municipal, seja atirado para a sepultura por desleixo institucional (práticas de quem  pouco ou nada parece entender de fragilidade, de vida e de seres humanos ).

A forma de transportar pessoas como se cargas se tratassem, permanece. E não é feita de forma clandestina. Certamente conhecerão outras histórias de negligência humana com final trágico. Vidas vão caindo, impercetivelmente, feito frutas podres. É a vontade de Deus. É a falta de recursos. É a lei que não funciona. É a nossa cultura. É o “escambau”. Somos todos nós.  

                    

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