Por: Nelson Faria
Por ser um assunto que me tem apoquentado esses dias e por ter noção das potenciais consequências, a curto, médio e longo prazo, tentarei, da forma mais simples e objetiva que puder partilhar as minhas interrogações sobre o nível do endividamento público atual.
Enquanto resultado do déficit primário, as nossas despesas do Estado são superiores às receitas dos impostos que arrecadamos, sendo grande parte do financiamento das nossas despesas advenientes de ajuda de outros países, e, mesmo assim, ainda insuficiente para o nível de dispêndios que temos. Neste caso, o endividamento público acaba por ser uma necessidade, em vários momentos da vida do Estado, contudo, ao que parece, assim continuará enquanto fizermos o mesmo esperando resultados diferentes. Continuaremos a regozijar de ser bons pedintes, com capacidade produtiva limitada e com “necessidades” ilimitadas na linha de grandeza dos nossos consumos.
Entretanto, é preciso aclarar que a dívida pública pode visar investimentos, bons investimentos (não confundir com elefantes brancos, obras eleitoralistas ou empreendimentos opacos a nível da relação dos decisores / executantes que roçam a corrupção), para se ter realizações capazes de criar externalidades que levam a mais receitas e possibilidade de, a médio longo prazo, o Estado arrecadar receitas ou benéficos com impactos financeiros que permitam liquidar a dívida contraída, com obras e melhoria da qualidade de vida das pessoas, que no fundo deve ser o objetivo de qualquer ação governativa.
Continuaremos a regozijar de ser bons pedintes, com capacidade produtiva limitada e com “necessidades” ilimitadas na linha de grandeza dos nossos consumos.
Mal será se, ad eternum, o Estado potenciar a dívida pública para consumo, para gastos, para as despesas básicas de funcionamento, quando o déficit primário, além de crónico, é aumentado, por razões não tão lógicas e racionais. Elucidativo de que, educação financeira precisa-se, sob pena de se alimentar uma bolha que poderá explodir no curto ou médio prazo, comprometendo as gerações futuras. Se a única forma de se financiar os déficits primários do Estado for recurso às dívidas de consumo, cedo ou tarde, as consequências de austeridade, com intervenção dos credores, vão-se sentir.
Para tentar explicar melhor, embora sem essa linearidade, será como comparar uma família que decide endividar-se para construção de um prédio cujo objetivo é a venda de apartamentos ou mesmo obter receitas de arrendamento que permitam liquidar o endividamento e obter outros recursos com esse património, comparado a uma família se endividar para as despesas que não poderão pagar ligadas ao seu orçamento mensal nomeadamente despesas com alimentação, luz e água, etc., ou mesmo para luxo (viagem internacional, consumíveis caros, festas) que alimentarão um ciclo da dívida e uma bolha que arrebentará e terá como consequência a perda de património dessa família, ou mesmo ser considerada inadimplente, com todas as outras consequências ligadas a esse status.
Os Estados também podem chegar a situação de inadimplência, por mais pessoa de bem que sejam consideradas e por mais capacidade de cobrar receitas que tenham… Ao menos serão condicionados na sua ação em situação de sobre-endividamento. E se a sua economia não gerar receitas suficientes para arrecadação e pagamento de dívidas? E se as receitas cobradas forem insuficientes para pagamento das dívidas? E se, por priorizar o pagamento de dívidas, não se conseguir satisfazer as necessidades básicas do Estado?
Em Cabo Verde, a nossa dívida tem estas duas componentes, de investimento e de consumo, sendo neste momento a preocupação maior o seu nível, “o ‘stock’ da dívida pública cabo-verdiana subiu 9,3% até fevereiro, em termos homólogos, acima de 284.607 milhões de escudos (2.572 milhões de euros), equivalente a 150,6% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para 2022.” – Relatório Síntese de execução orçamental Ministério das Finanças. Isto é, mesmo que as consequências impactantes da COVID 19 e outros fenómenos continuem a não favorecer o crescimento económico, potenciando por essa via a redução da dívida pública sobre o PIB, já que em valor tem sido sempre crescente, ela manter-se-á, não se sabe até quando, acima da capacidade produtiva da nossa economia, agravando-se por, cada vez mais, orientar-se para o endividamento de consumo e não de investimento: “Em fevereiro último, a dívida pública contraída internamente valia o equivalente a 44,4% do PIB cabo-verdiano (43,5% em fevereiro de 2021), aumentando para quase 83.843 milhões de escudos (758 milhões de euros), enquanto a dívida externa valia 106,3% (104,8% em 2021), equivalente a mais de 200.765 milhões de escudos (1.814 milhões de euros).”
Mesmo assim, falar na redução do Estado e das suas despesas é considerada heresia, como se a redução do déficit primário não fosse possível por essa via. Espero que não sejamos obrigados a fazê-lo pelos credores… Dúvidas: Até quando e como será pago? Teremos como pagar se não for pelo perdão da dívida de alguns credores? E se não houver perdão da dívida? E se chegarmos à situação de inadimplência? Que consequências nas gerações vindouras em caso de não haver perdão da dívida?
Todavia, lembremos sempre: “Não há almoços grátis e, se for de graça, não o é por muito tempo”. Falando em tempo, que os decisores de ontem e de hoje fiquem cientes e conscientes que os impactos da dívida pública no amanhã, nas gerações que se seguem, dos filhos netos, bisnetos, é tão somente consequência da sua ação e responsabilidade. Todos pagaremos, direta ou indiretamente pelo endividamento atual, esperando que o “todos” sejam também os decisores.