David Leite
Não vou negar: sou daquela geração de jovens adolescentes que, na flor e no vigor da idade, gritaram de punho erguido e a plenos pulmões, “viva a unidade Guiné-Cabo Verde!” Segui de olhos fechados outros jovens idealistas apenas mais graúdos, que nos faziam acreditar em ribeiras de leite e mel sob o signo da “reafricanização dos espíritos”. No rescaldo da luta comum contra o colonialismo, a independência era o selo que transferia o nosso destino para as nossas mãos, e a “unidade” o elo que ligava o nosso destino ao dos nossos irmãos da Guiné-Bissau.
E acreditámos todos… ou quase. Os que não acreditaram foram presos pelas forças armadas portuguesas, por vontade expressa do PAIGC! Cruel paradoxo este: enquanto gritávamos vivas à “unidade Guiné-Cabo Verde”, patrícios nossos, filhos destas ilhas, eram encarcerados nas masmorras do Tarrafal!
Até ao dia em que a história lhes deu razão! Pois claro, se até alguns altos dirigentes do Partido, na Guiné como em Cabo Verde, eram contra a “unidade”! Só que não o diziam: Cabral deixara escrito, estava no programa do Partido, e não se contesta um dogma! Assim, nos comícios era o mesmo slogan, nos discursos oficiais a mesma retórica sobre a “unidade” de fachada!
Também não passou dos discursos um Conselho da Unidade criado em 1977, agrupando deputados dos dois países. Em teoria, a «união orgânica» (assim se dizia em linguagem política) devia ser validada pelos eleitos dos dois povos e sufragada por via de referendo – só que ninguém dizia quando.
Assim, a «união orgânica» não esteve na ordem do dia do 3° congresso do PAIGC, realizado em Bissau em novembro de 1977, e o debate foi sendo relegado às calendas gregas. Et pour cause, poucos acreditavam ainda no princípio da “unidade”, uns por convicção, outros por cepticismo.
Mas também, convenhamos, em que bases podia assentar a “unidade” tal como era concebida? Culturalmente, podia apontar-se o crioulo, embora falado de diversas maneiras nos dois países. Talvez encontrasse alguma expressão no princípio da reciprocidade entre caboverdianos e guineenses ao gozarem dos mesmos direitos e obrigações no país do outro.
Porém, não se promoveu a circulação de pessoas e bens para aproximar o continente e o arquipélago. A criação da Companhia Maritima de Navigação Guiné-Cabo Verde (NAGUICAVE) foi uma aventura positiva, mas efémera.
O resto, era só política: o PAIGC, partido supranacional, fazia-nos partilhar com o país irmão o mesmo hino nacional; o exército e as organizações de massas tinham as mesmas siglas: FARP, JAAC, OM, Pioneiros… Havia até caboverdeanos na chefia das FARP e na administração estatal na Guiné! Em teoria, o presidente de Cabo Verde, Aristides Pereira, podia, na sua qualidade de secretário-geral do Partido, presidir o conselho de ministros da Guiné na ausência do presidente Luis Cabral – o que certamente não era, a justo título, do agrado de todos os guineenses…
Mas os pontos comuns paravam por aí. Até os ministros na Guiné tinham outra designação: eram «comissários de Estado», e o primeiro-ministro “comissário principal”. Em Cabo Verde adoptámos o Escudo caboverdeano, e não o Peso que era a moeda guineense. Outra diferença, a religião: os caboverdeanos cristãos, os guineenses maioritariamente muçulmanos e animistas (o que, em boa verdade, nunca impediu a sã convivênca entre uns e outros, na Guiné e hoje em dia em Cabo Verde, países conhecidos pela sua hospitalidade) Os usos e costumes, as diferenças culturais, os níveis de escolaridade, alimentavam ainda preconceitos bem enraízados num passado colonial de sinistra memória que dividia para reinar.
Com tão pouco em que pegar, a «união orgânica» só podia ser um desiderato político-idiológico imposto “de cima” aos caboverdeanos e aos guineenses, simples espectadores de uma “mise en scène” que não pediram. Politicamente, o caminho estava livre: a UDC e a UPICV estavam neutralizados desde as prisões de 1974. A União Capverdiana Independente e Democrática, UCID, fundada em Rotterdam em 1978, conseguia resistir, mas no estrangeiro. Na Guiné, a FLING encolhia-se face ao rolo compressor do PAIGC; mesma coisa, um denominado Grupo Bafata, dirigido na sombra por um certo Malan Sanha, antigo comandante da guerrilla, cuja divisa era «devolver a Guiné aos guineenses»; a UPANG, criada em Lisboa em 1976, foi um nado-morto.
Comecei este tema com um precedente artigo, já lá vão dois – e falta um! Sugiro terminarmos esta trilogia lá onde termina a “unidade”: no golpe de Estado de 1980 em Bissau. Nesse ano, o PAIGC promoveu dois projectos constitucionais díspares: regime parlamentarista para Cabo Verde e semi-presidencialista para a Guiné.
Estava entornado o caldo: com o golpe de Nino Vieira, não se fala mais da “unidade”!
Coming soon / À suivre…
