Comissão Adhoc +São Vicente: Por um Plano Estratégico para a ilha do Monte Cara

É tempo de São Vicente retomar as rédeas do seu destino e valorizar o seu legado, de forma inclusiva, mas sob a liderança dos seus melhores. O planeamento, requalificação e reabilitação da orla marítima e das zonas que se expandiram sem qualquer plano urbanístico nas suas encostas é tarefa urgente.


Introdução:

Ao completar neste dia o 563º aniversário do seu achamento pelos navegadores portugueses, e neste ano de 2025 os 230 anos de história povoada (a primeira tentativa ocorre em 1795 com população proveniente da ilha do Fogo, Madeira e Portugal continental), a ilha de São Vicente continua a ser a mais cosmopolita e uma das mais celebradas do arquipélago de Cabo Verde, tanto pelos nativos como por quem a visita. O facto de o povoamento se ter verificado apenas 300 anos depois do achamento e de coincidir com a era da Revolução Industrial Inglesa, marcou em definitivo o seu caráter. Um carácter voltado para um mundo e um tempo em que a memória da escravatura se desvanecia, e em que África era uma referência mais geográfica do que cultural-identitária.

Argumentaríamos, pois, contrariando as teses do historiador António Correia e Silva, e alinhando com o que vem defendendo o antropólogo Manuel Brito-Semedo, que, no que tange a crioulidade, São Vicente não tem seu berço na Cidade Velha. Possui berço próprio, que não é nem agrário nem tradicionalista, nem armador-proprietário, mas antes marítimo, urbano, moderno e ocidental. O seu mundo é predominantemente atlântico, e.g., oceânico, e é nas margens do Atlântico norte e ocidental que tem as suas principais referências.

Em 1839, menos de 50 anos após os primeiros esforços de colonização, os ingleses construíram em São Vicente aquele que seria seu principal empreendimento carbonífero no Atlântico. Aqui se mantiveram por mais de 100 anos! Empregaram carvoeiros, catraeiros e marinheiros, impulsionaram uma burguesia comercial e administrativa eficiente e desburocratizada.

Na mesma altura, as autoridades portuguesas tomariam a decisão de transferir a capital da Praia para Mindelo. O projeto não foi avante, dada a forte resistência vinda da Praia e de Santo Antão, mas um plano para a nova capital fora já projetado e acabou por determinar desenvolvimentos futuros. Foi um plano cuidadosamente concebido por decreto régio da rainha D. Maria II, que continha inúmeras semelhanças com a Baixa Pombalina de Lisboa. A estrutura urbana ao redor da baía prevaleceu e conferiu a Mindelo, como diria um visitante, o seu flair especial.

Até aos anos 1970, a expansão urbana foi gradual e não alterou profundamente o traçado inicial do século XIX. No entanto, o boom demográfico que se sucedeu à independência levou ao aumento significativo da população nas encostas que circundam a cidade. Duas razões principais estão por detrás deste boom: maiores oportunidades de trabalho na ilha devido ao aumento dos investimentos industriais associados ao Porto Grande e as consecutivas secas que afetavam, como continuam a afetar, as ilhas agrícolas vizinhas de Santo Antão e São Nicolau.

É tempo de São Vicente retomar as rédeas do seu destino e valorizar o seu legado, de forma inclusiva, mas sob a liderança dos seus melhores. O planeamento, requalificação e reabilitação da orla marítima e das zonas que se expandiram sem qualquer plano urbanístico nas suas encostas é tarefa urgente. O adiamento atinge mais de duas décadas, arriscando a cidade a uma descaracterização irreversível e o apagamento da sua memória patrimonial, com a demolição de edifícios emblemáticos e o loteamento de terrenos sem planos ou infraestruturação prévia.

Em inícios de 2023, um grupo de académicos e profissionais ligados à história cultural, arquitetura, urbanismo e gestão portuária, entre outras áreas, propôs-se esboçar um Plano Estratégico para São Vicente, destinado a apoiar os poderes públicos a regenerar, reordenar e requalificar o espaço urbano e territorial da ilha. Foi entendimento do grupo que um enfoque inicial seja dado à Orla Marítima do Mindelo, tendo em conta a sua ocupação excessiva por indústrias pesadas, que vêm ameaçando a sustentabilidade ambiental e ponto em risco a segurança da sua população, face à imprevisibilidade de episódios naturais extremos em resultado das alterações climáticas.

Descritivo:

A Orla Marítima da Baía do Mindelo situa-se entre a Ponta João Ribeiro, a Noroeste, e a Ponta Morro Branco, a Sudoeste. As excelentes condições naturais do Porto Grande fizeram com que este fosse considerado um dos portos de águas profundas mais seguros do mundo. Devido a sua localização privilegiada no Atlântico foi alegadamente também um dos três portos mais movimentados do planeta no século XIX. Já neste século, a Baía do Mindelo foi eleita uma das dez mais belas do mundo. O Porto Grande continua a ser o maior e melhor porto de Cabo Verde, servindo a marinha internacional e afirmando-se cada vez mais como um importante porto de escala de navios de cruzeiros do Atlântico médio.

No entanto, apesar da sua aclamada beleza e o seu potencial turístico, a Baía do Mindelo vem sofrendo desde os primeiros dias da independência uma sobreocupação que a desfigura, com a instalação de grande parte das indústrias pesadas de São Vicente ao longo da sua orla.

Em 2020 foi criada sob superintendência direta do Primeiro Ministro a Autoridade da Zona Económica Especial Marítima de São Vicente (AZEEM-SV), com a missão de, até 2035, transformar a ilha de São Vicente e a região Norte do país numa base internacional de comércio do Atlântico e num destino turístico competitivo. Para tanto foi atribuída a AZEEM competência na otimização espacial da ilha, introduzindo melhoramentos nos espaços de produção, ambiente, planeamento urbano, e ainda, na libertação da orla marítima do Mindelo da sobrecarga de indústrias.

Anunciou-se que até 2035 as indústrias pesadas ali situadas seriam transferidas sob sua coordenação
para Saragarça ou outra zona da ilha. Ainda que não tenham sido especificadas quais as indústrias a transferir, fácil será depreender. São indústrias pesadas na orla marítima do Mindelo: a CABNAVE, a SODIGAS, a ELECTRA, a VIVO ENERGY, a MOAVE (Nordeste), a ENACOL, a ONAVE e o Complexo da Pesca (Centro-Sul). É importante que a AZEEM ou o Governo façam publicamente um ponto de situação sobre a transferência destas indústrias.

É do mesmo modo importante que diferentes agentes locais sejam ouvidos e possam dar corpo ao projeto através das suas ideias, competências e capacidade de congregar recursos internos e externos. Pela sua história portuária, educativa, administrativa e comercial, São Vicente reúne competências e capacidades residentes e na diáspora que lhe permitirão, sendo devidamente aproveitadas, produzir um efeito multiplicador considerável na economia da ilha e do país. A Comissão Adhoc +São Vicente iniciou esse processo promovendo o ciclo de seminários sobre a orla marítima, acolhido pela Câmara Municipal de São Vicente entre maio-julho de 2024. As ideias e propostas ali apresentadas e debatidas serão tidas em conta na elaboração da proposta do Plano Estratégico.

Metodologia:

Segundo Lynch (Banerjee e Southworth, eds., MIT Press, 1990), o carácter de um bairro ou urbe é
determinado pela sua história, cultura, arquitetura e paisagem. Ter caráter significa que a urbe é coerente e serve de base para orgulho, afeto e sentido de comunidade. A sua regeneração requer um planeamento que garanta que esses fatores não sejam perturbados no processo. Isso é possível com conceção cuidadosa dos planos estratégicos que irão presidir às iniciativas de regeneração (idem). Um bom plano estratégico terá de ser necessariamente um documento dinâmico, que pode ser adaptado a mudanças de condições.

Partindo destes preceitos e metodologias recomendadas por diferentes fontes, o Plano Estratégico a esboçar incluirá análises sobre população, economia, habitação, transporte, instalações e uso do solo na ilha. Terá em conta contribuições do público, pesquisadores e técnicos, os desenvolvimentos existentes e as características físicas e socioecónomicas dos espaços em causa.

Em termos mais concretos, a proposta do Plano Estratégico incluirá as seguintes funções:

Sair da versão mobile