Por: Alcides Lopes (PhD)
Compreender o racismo, que se propaga como um fenômeno estrutural, amparado por convicções sobre “rigor científico”, munido de violência bélica e propagandística, nos regimes republicanos ocidentais durante a transição do século XIX para o XX, implica uma análise profunda. Uma análise que nos remete a um longo e secular processo, anterior à expansão do século XV.
Os tempos de hoje insistem em querer apagar os nossos sorrisos largos, manchar os nossos dentes incrivelmente brancos e encardir os nossos lábios encarnados, carnudos, com a tóxica nicotina. Querem ofuscar nossos olhos, grandes e pequenos, que lacrimejam de alegria em formas amendoadas e se comparam às mais requintadas efígies faraónicas esculpidas na melanina. Sufocar através dos dedos apertados, num ambiente lacrimogêneo, o ar já poluído e putrefato da cidade.
Os dias atuais trazem no seu bojo um odor escatológico, lívido e embranquecido da morte caiada nos túmulos alvos do catolicismo colonial. Há cem anos, o mundo não previra o thumos, eivado de preconceitos raciais e quimeras arianas supremacistas, que destilaria seu veneno mortal sobre a Europa, a qual, rapidamente, aprenderia a exportar toda aquela violência para as suas colónias, especialmente na África e no Oriente.
Compreender o racismo, que se propaga como um fenômeno estrutural, amparado por convicções sobre “rigor científico”, munido de violência bélica e propagandística, nos regimes republicanos ocidentais durante a transição do século XIX para o XX, implica uma análise profunda. Uma análise que nos remete a um longo e secular processo, anterior à expansão do século XV.
O processo ao qual me refiro, se chama Orientalismo e é identificado como o discurso sobre o Oriente enquanto uma invenção europeia, desde a Grécia Antiga. Estudiosos como Edward Said e Ian Hacking identificam a peça teatral mais antiga atribuída aos gregos, Os Persas de Ésquilo, como o discurso sobre o Oriente enquanto uma invenção europeia. As ideias sobre seres exóticos, memórias e paisagens obsessivas, experiências notáveis no Oriente, perseguem os ocidentais desde a Antiguidade.
No filme 300, assistimos à segunda invasão persa à Grécia (480–479 a. C). No épico, Xerxes queria conquistar as terras onde seu pai Darius havia sido derrotado. Na peça grega que inspira o filme, Ésquilo retrata o sentimento de desastre que toma conta dos persas quando ficam sabendo que seus exércitos chefiados pelo rei Xerxes foram destruídos pelos gregos. Embora Leónidas tenha sido sacrificado, os persas foram derrotados e humilhados. Ao Oriente são atribuídos sentimentos de vazio, perda e desastre. Finalmente, o lamento de um passado glorioso das épocas longínquas. Eis o paradigma segundo o qual a Europa se define historicamente com relação ao Oriente.
Desde a época clássica, todas as peregrinações ao Oriente tinham de passar pela Terra Santa. Edward Said sugere que a maior parte delas era uma tentativa de reviver, de libertar, ou mesmo, recortar, do magnânimo e fecundo Oriente, uma porção da realidade greco-romana/judaico-cristã, para ela mesma – a Europa.
Quando falamos do Oriente, referimo-nos a um mundo adjacente à Europa. O Oriente é onde sempre estiveram localizadas as maiores, as mais ricas e as mais antigas colônias europeias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro. Falamos, portanto, das terras bíblicas. De onde brotam todas as grandes religiões como o judaísmo, o cristianismo e o islã. Ou seja, como sustenta Said, o Oriente ajudou a definir a Europa, ou o Ocidente, como sua imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste.
Contudo, não devemos assumir que este Oriente inventado é meramente imaginativo. Antes pelo contrário, o Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. Neste sentido, o Oriente expressa e representa o papel cultural e até mesmo ideologicamente, como um modo de discurso com apoio e credibilidade de instituições, vocabulário, erudição, imagética, doutrina, bem como, burocracias e estilos coloniais.
Entretanto, é importante que a leitora ou o leitor tenha em mente que falamos do Oriente, ao mesmo tempo em que falamos de vários “orientes”, a depender do contexto e tempo históricos da Europa a que nos referimos. Em outras palavras, o orientalismo é uma abordagem que abrange diversas coisas, interdependentes entre si. Desde a etiqueta acadêmica do Oriente, permeada pelo estilo de pensamento ocidental baseado numa distinção ontológica e epistemológica estabelecida entre “o Oriente” e “o Ocidente”, até os intercâmbios, entre os sentidos acadêmico e imaginativo como uma constante, garantidos pela instrumentalização e institucionalização organizadora e organizada para negociar com o Oriente.
Ou seja, a partir do séc. XVIII, poder fazer declarações a respeito do Oriente, autorizar discursos e opiniões sobre ele, colonizando-o e governando-o. Em suma, o orientalismo como um estilo ocidental de dominação, reestruturação e autoridade sobre o Oriente. Até o início do século XIX, o Oriente referia-se apenas às terras bíblicas e à Índia. A partir do séc. XIX até o final da guerra de 1939-1945, a França e a Inglaterra dominaram o Oriente e o orientalismo. Após a Segunda Guerra, os EUA têm o domínio do Oriente e a sua abordagem é similar ao modo que a França e a Inglaterra fizeram outrora. Sendo que a dimensão dos seus erros é muito mais catastrófica. Quem não ouviu falar da guerra do Vietnam? De Nagasaki e Hiroshima?
Afinal de contas, quais são os termos do atual diálogo ríspido entre a Rússia e os EUA, enquanto os alemães, os franceses e os ingleses passam pano? O que explica a insistência dos americanos em afirmar que a Rússia está à beira de fazer uma guerra contra o Ocidente? Será a Ucrânia hoje mais um pedaço a ser abocanhado do Oriente, pela OTAN, ou será regurgitada à favor da Rússia, como foi, anteriormente, com a Criméia?
É crucial compreendermos que o orientalismo ocidental, ao reestruturar e exercer autoridade sobre as representações do Oriente, ao longo dos séculos, acaba criando um discurso foucaultiano, tal como está descrito na Arqueologia do Saber e em Vigiar e Punir. Discurso este que se exprime através da enorme sistematização por meio da qual a cultura europeia consegue administrar e até produzir o Oriente política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente.
Entretanto, deve-se considerar o peso da diferença quantitativa e qualitativa entre o envolvimento da França e da Grã Bretanha com relação aos outros atores europeus e atlânticos. Logo nas primeiras linhas da Introdução da famosa obra Orientalismo (1978), Edward Said remete-nos a nomes como Chateaubriand e Nerval, como sendo expoentes da vanguarda na construção epistemológica sobre determinadas concepções do Oriente povoadas por categorias como semitas, egípcios, indianos, etc., diferentemente daquelas priorizadas pelos norte americanos, a exemplo da China e do Japão, por exemplo.
Os franceses, os britânicos, os alemães, os espanhóis, os portugueses, italianos e suíços tiveram uma longa tradição daquilo que se denomina orientalismo. Evidentemente, não podemos excluir os russos desta empreitada. Falamos das histórias contadas, imaginadas ou experienciadas, narradas, inventadas, sobre “o Oriente que está baseado no lugar especial ocupado pelo Oriente na experiência ocidental europeia”.
Contudo, bem sabemos que, no que tange a Rússia, não temos certeza onde termina o Ocidente e começa o Oriente, ou se ela prefere permanecer como um grande muro intransponível entre os dois mundos.
Além do mais, faz tempo que o Ocidente encara em direção ao Oriente. Neste contexto, parodiar com Nietzsche parece até divertido: se você encara demais o Oriente, o Oriente vai te encarar de volta. Neste tabuleiro de xadrez contemporâneo, as categorias tempo e espaço não funcionam como anteriormente.
Na realidade, existem dimensões onde a guerra já vai bem rodada, como por exemplo, no universo dos cyberattacks lutam-se batalhas diariamente. Podemos ver seus reflexos nos média quando lemos notícias de que o estado britânico, os EUA, a França e a Alemanha reúnem esforços para revidar os ataques cibernéticos da Rússia contra a Ucrânia, como foram os casos recentes dos ataques ao sistema financeiro, envolvendo os dois maiores bancos ucranianos e o Ministério de Defesa da Ucrânia, na semana passada.
Todos vimos como Putin chamou de histeria as acusações euro americanas e como, em seguida, se encontrou com o presidente da China todo sorrisos, entre solenidades, e agora, mais recentemente, com o presidente do Brasil. Enquanto, manteve na outra ponta de uma mesa exageradamente comprida, os seus antagonistas europeus e americanos, quando os recebeu.
“Mas essa peleja não é de hoje não, Seu Zé!” Certamente, desde Napoleão e a sua obstinada invasão à Rússia, a ruína do seu exército e o fim do seu reinado, os russos conhecem ou desconfiam das más intenções dos franceses. Disso, não temos dúvidas. Tampouco, Putin morre de amores pelos alemães. Seja pelas mobilizações pangermânicas, antes da primeira guerra mundial, que almejavam desmembrar a Rússia; pela declaração de guerra da Alemanha contra a Rússia em 1914, a qual, certamente, desempenhou um papel na revolução socialista de 1917; ou ainda, pela traição nazista de nome Operação Barbarossa, de 22 de junho de 1941.
O caldeirão é dantesco e as animosidades têm raízes históricas. o imperador Aleksandr III, no século XIX, costumava afirmar que a Rússia possui somente dois aliados: seu exército e sua marinha. Mas, a verdade é que, embora a Rússia não faça parte de uma grande aliança militar como a OTAN, mantém parceiros políticos e econômicos em todo o mundo. Alguns deles são até obrigados a apoiar o Kremlin em caso de conflito.
A Rússia mantém acordos juridicamente vinculativos de defesa mútua, em primeiro lugar, com os membros da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança intergovernamental criada em 1992 reunindo atualmente seis ex-repúblicas soviéticas: além da Rússia, integram também Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Para além desta modalidade, ela cultiva relações por tratado de adesão, segundo as quais, mesmo que as OTSC nunca tenham sido chamadas para combate, a organização realiza exercícios militares com regularidade.
Mas, ainda existem aqueles estados que apesar de não haver acordos oficiais, são conhecidos como aliados da Rússia: a Síria e as gigantes China e Índia. Portanto, realmente fico meio nervoso quando vejo o Sr. Biden armado em fadigado com o Sr. Putin. Vocês não ficam, pelo menos, apreensivos?