Adolfo Lopes
- Seleção e Demolha dos Ingredientes / Cozimento Base
Tudo começou na véspera da independência receosa daquele inesquecível 5 de julho de 1975. Entre a esperança e o desalento, ardia o desejo de transformar a vida dos cabo-verdianos. Como quem prepara o milho para a cachupa, também era preciso preparar a alma da nação, mergulhando-a em água quente para não deixar arrefecer a chama da mudança. Com mãos calejadas e olhos firmes, escolhemos os ingredientes do novo Cabo Verde: combater a fome, semear a educação onde antes só havia poeira, e temperar o futuro com paz e estabilidade o sal que preserva o desenvolvimento. No lume brando da história, cozinhámos alianças, abrimo-nos ao mundo sem nos entregarmos a ele, recusando ser apenas mais uma peça no tabuleiro da Guerra Fria.
Chamados a escolher entre Oriente e Ocidente, nós escolhemos o centro o centro da nossa soberania. E, contra o velho ditado, ousámos estar de bem com gregos e troianos, sem deixar de ser nós mesmos.[1]
2. Adição das Carnes ou Peixe
Veio o tempo de engrossar o caldo. Adicionámos estruturas, instituições, estradas e ideias. Fomos deixando, pouco a pouco, o rastro da fome e da escassez. Mas, no fundo da panela, algo permaneceu por mexer: a mentalidade. Ainda hoje, entre conquistas e relatórios, há quem continue refém de um fardo invisível não daquilo que se come, mas do que se carrega no peito: o medo de sonhar. A convicção amarga de que “ka ta da más”. A resignação disfarçada de queixa “nos e koitadu” repetem vozes herdadas de um tempo que ainda não soubemos desligar. É que não basta carne para dar sustância: é preciso transformar o paladar, mudar a forma como se mastiga o mundo.
3. Inclusão dos Legumes e Verduras
Depois vieram os legumes: a fartura aparente. Mandioca, batata-doce, abóbora. Tudo na panela. Tudo a ferver. Mas, na mesa… falta consciência. Sobra prato, sobra comida, mas falta partilha e educação para não desperdiçar. Nas festas e celebrações, o ritual se repete: comida que poderia chegar a todos, mas não chega. Porquê? Porque a fome do passado ainda se senta à mesa do presente, mesmo sem convite. “Tenho que guardar para amanhã.” Mas o amanhã às vezes estraga, e o medo da escassez transforma abundância em lixo. A pergunta permanece no ar, como o cheiro de uma panela esquecida ao lume: De que ainda temos fome?
4. Temperos e os últimos toques
Falta-nos tempero. Não de alho ou cebola, mas de consciência. Falta-nos o sabor da transformação interior. Poupar é virtude, sim, mas deixar estragar é pecado. E, no meio da panela social, onde a abundância é possível, é preciso mexer com mãos de justiça e olhar generoso. Como nos lembra Provérbios 22:9: “O que vê com bons olhos será abençoado, porque dá do seu pão ao pobre.” Não se trata de caridade, mas de compaixão como cultura, de partilha como política de Estado, um tempero capaz de nutrir toda a nação.
5. Cachupa Refogada: O sabor que fica no dia seguinte
No dia seguinte, a cachupa volta ao lume com menos pressa e mais profundidade. É aí que os sabores se encontram verdadeiramente. E é aí também que a história nos convida a olhar para os passos que deixámos atrás. Lembramos com amargura Angola, Moçambique e o precaríssimo contrato de São Tomé, caminhos abertos à força, promessas de pão que se tornaram labirintos. Muitos dos nossos partiram, e por lá ficaram até os dias de hoje, como páginas arrancadas de um livro que ainda tentamos terminar.
Hoje, a migração já não é de barcos ou bilhetes, mas de alma: parte-se por dentro. Perdem-se sonhos antes de nascer; trocam-se esperanças por desilusões baratas. Agora, a nossa missão não é refogar o que sobrou, mas cozinhar o amanhã com os ingredientes certos: valores como: solidariedade, respeito, justiça, serenidade e irmandade[2]. A panela está de novo ao lume, e o lume, desta vez, é nosso.
“Cabe-nos decidir se queremos alimentar uma nação com alma ou apenas satisfazer a fome de um dia…”
[1] Lima, R. W., & Vicente, S. D. (2023). Cabo Verde à beira da revolução: A emergência do pan-africanismo cabo-verdiano e os protestos em África. Africa Development, 48(1), 103–126. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/369508219_Cabo_Verde_a_beira_da_revolucao_a_emergencia_do_pan-africanismo_cabo-verdiano_e_os_protestos_em_Africa
[2] Kumah‑Abiwu, F. (2024). Global African Thought and Movements: Reflections on Pan-Africanism and Diasporic Discourses. Social Sciences, 13(10), 554. Disponível em: https://doi.org/10.3390/socsci13100554