Por: Sónia Almeida
Ao ler “Uma Crónica de desassossego” de Leão Lopes, publicado no jornal “Expresso das Ilhas”, que faz jus a vários outros relatos, pareceu-me necessário lançar uma pequena reflexão sobre as angústias e neuroses do nosso dia-a-dia, em grande parte alimentadas quase que por uma síndrome de abandono.
O que narra a crónica, aplica-se, “mutatis mutandis”, a todas as esferas da sociedade caboverdeana, estendendo-se de forma transversal do sector público à esfera mais privada.
Da saga dos transportes marítimos, sobre os quais foi já quase tudo dito, à tragicomédia dos transportes aéreos, que só parecem existir para e em função da Praia, como uma espécie de aplicação ridiculamente anacrónica do adágio, “todos os caminhos vão dar à Roma”.
Se, por falta de um aeroporto internacional digno deste nome, beneficiávamos de vôos diários para o Sal, agora somos forçados a retroceder no tempo e passar pelo Cabo das Tormentas – num ritual de vassalagem imposto pelos nossos suseranos.
Trata-se de uma decisão política discutível, que se inscreve na diagonal duma politica interna geral e cujas implicaçoes são profundas pela gravidade e extensão do seu impacto tanto a nivel politico como socio-económico e psicosocial.
A nível político porque estabelece, nolens volens, uma hierarquia entre as ilhas e, consequentemente, entre os cidadãos, reduzindo assim, metade deles, a cidadãos de segunda categoria ; uma espécie de nova plebe submetida a uma aristocracia colonial auto-proclamada.
A nível económico para além do impacto financeiro imediato – uma viagem para o Sal que antes custava à volta dos 10.000 ECV, passou a custar cerca de 30.000, sem mencionar os custos de estadia na capital. Acrescenta-se a tudo isso as inevitáveis perdas a médio e longo prazo , para além do fomento quase impiedoso de brutais discrepâncias de nível de vida entre Praia e restantes ilhas.
Atendendo à situação económica do país, poucos são os que se podem dar ao luxo de incorrer em tais despesas, ainda que seja por razões de força maior; no que respeita os emigrantes, é improvável que estejam dispostos a pagar mais 280 € por pessoa. Os turistas, a quem pouco apetece fazer stop overs desnessários e desperdiçar um valioso dia de férias em aviões e aeroportos, procurarão, num ápice, outros destinos mais acolhedores e, definitivamente, menos trapalhões.
In fine, uma miopia política que acaba por penalizar os cidadãos, mas também o país na sua globalidade, atendendo a importância que os emigrantes e o turismo revestem para a sua economia. Outrossim, a nível interno, esta política acabará por aprofundar as clivagens sociais existentes e por provocar outras novas; verticalmente entre as classes sociais e horizontalmente, entre as ilhas.
Pensando bem no assunto, em vez do Estatuto Especial para Praia, dever-se-ia reflectir sobre uma indexação salarial que tenha em conta os custos de vida adicionais ocasionados por uma política nacional abusivamente centralizadora.
A nivel psicosocial: é, contudo, neste nível que o efeito mais perverso e perigoso se faz sentir, a meu ver. Aplicado de forma consistente, esse modus operandi acaba por incutir, de forma insidiosa, em cada indivíduo, um sentimento de impotência, de fatalismo e de aceitação do carácter ineluctável da sua sub-condição. Aos poucos, acabará por transformar a sociedade num bando de zombis, demasiado entumecidos pelo seu dia-a-dia para se preocuparem com o destino colectivo.
O que foi dito no artigo em referência, sobre a incúria e abusos a que se devem submeter os cidadãos nos barcos, aplica-se a todas as esferas da sociedade; aos bancos, às instituições públicas e para-estatais, ao exército e mesmo à rua.
Senão, vejamos: apesar de serem, em geral, atribuido números para atendimento público – devendo garantir o princípio democrático do ‘first come first served’– não é nada infrequente ver uma, duas, três pessoas… chegarem e serem atendidas sem ter que aguardar a sua vez. Um ligeiro aceno de cabeça é suficiente; e ninguém ou quase ninguém reage. Quer isto dizer que as pessoas já estão condicionadas para aceitar um tratamento desrespeitador e inferiorizante.
A constante falta de civismo é, também, absolutamente insustentável. Não é raro ver pessoas atirarem lixo para a rua, só porque sim; jovens a serem grosseiros, só porque… ; constatar a destruição tanto de bens públicos como privados, simplesmente porque … ; estacionar carros à frente de garagens alheias, ou no meio de vias públicas, simplesmente porque… atrocidades cometidas por militares porque…
A sociedade caboverdeana está, toda ela, infiltrada pela normalização de comportamentos anti-sociais e corruptos
A maioria é vítima, muitos são perpetradores e outros são espectadores. Poucos são ainda aqueles que se opõem e resistem à “banalização do mal”. Tudo acontece de forma muito subreptícia. O desespero em que se encontra mergulhada a população, no seu quotidiano, depara-se com um silêncio desdenhoso das autoridades, tanto centrais como locais. Ah pois, porque aqui as Câmaras também fazem o que bem lhes apetece, à revelia dos valores democráticos (vide a situação dos vereadores na CMSV, construções aleatórias, destruição do patrimonio urbanístico e…).
O modo como tem sido gerida a pandemia é também paradigmático da falta de coerência, do “m’en foutisme” e da total ausência de ética com que são tecidas as decisões e actuações deste governo. Dito isto, o aproveitamento massivo e oportunista desta situação por todos os partidos, durante as campanhas eleitorais, não terá escapado a ninguém.
Numa situação de pandemia altamente infecciosa e mortal, como é que se pode explicar que o governo tenha feito vista grossa à campanha eleitoral e inevitáveis aglomerações, apesar das recomendações das autoridades sanitárias ao mais alto nível?
O resultado está à vista com um crescimento exponencial de casos.
Mas, quem é que responde por tudo isso? E agora, com que autoridade é que podem exigir às pessoas que respeitem o confinamento, com que credibilidade?
A pergunta que nos ocorre, porém, é: quem beneficia com este caos organizado?