Cabo Verde, 50 anos de Independência: Um filho que nunca cresceu

Rogério Tavares

Em 5 de julho de 1975, Cabo Verde ergueu-se como uma nação livre, rompendo com mais de cinco séculos de domínio colonial. A 5 de julho próximo, celebramos meio século de independência. Mas o que celebramos, afinal? Um país verdadeiramente liberto ou apenas um filho rebelde que, continua a bater à porta do pai? Comemoramos a independência ou levantamos uma cortina de fumo para esconder a nossa dependência inabalável de Portugal?

A narrativa oficial exalta a rutura com os grilhões coloniais, mas basta atravessar a rua para sentir o odor persistente da dependência em cada transação, em cada ato quotidiano. O euro, mediado pelo Acordo Cambial de 1998 e apoiado por Portugal, é o cimento invisível que liga as nossas economias. Em 2023, €140 milhões da nossa dívida foram simplesmente reestruturados em fundos climáticos — um eufemismo elegante para a mesada que sustenta uma economia que não se quer verdadeiramente autónoma. Queremos celebrar, mas só ouvimos o “tilintar” constante dessas mesadas.

A nossa dependência emocional de Portugal verifica-se pelo simples fato de se ecoar mais pelas ruas ensolaradas de Cabo Verde os gritos fervorosos de cabo-verdianos apaixonados pelo Benfica do que no levantar de braços para apoiar causas verdadeiramente nacionais. Em muitos casos, veste-se mais a camisola vermelha da cidade dos “alfacinhas”, com muito mais fervor, do que o manto azul, símbolo da nossa nação e das causas nacionais.

O peso da dependência é esmagador. Cerca de 80% do que consumimos vem de Portugal, e são as remessas da diáspora e a ajuda internacional que sustentam um sistema económico que, isolado, jamais resistiria. Na cultura, nas leis, nos sistemas jurídicos e institucionais continuamos a vestir o terno português: traduzido à nossa realidade, mas nunca repensado pela nossa própria cabeça de dentro para fora. É uma mera cópia. Nem o crioulo — a nossa língua materna, a nossa alma — desafia o status quo. Afinal, então, por que questionar um molde que nos tem servido tão bem?

A realidade é brutal: a nossa dependência económica, histórica, cultural e emocional atingiu níveis patológicos. É quase cómico: criticamos Portugal e a colonização com veemência, mas corremos para o mesmo colo ao primeiro sinal de dificuldade. Um colo que dizemos rejeitar! Essa relação de amor e ódio é mal resolvida, quase tragicómica. Nos discursos inflamados, Portugal é sempre o opressor, o colonizador, o explorador da alma cabo-verdiana. Mas, quando se anuncia um novo acordo de regularização migratória, somos os primeiros a bater às portas da Embaixada e exigimos que nos deixem “entrar” nesta utopia de uma vida melhor, mas fora da nossa terra.

A cada 5 de julho, entoamos hinos à soberania enquanto o maior sonho de muitos dos cabo-verdianos é emigrar para Portugal, abandonar o arquipélago, conquistar a cidadania portuguesa e casar a independência com a fuga para Portugal! Uma lógica silenciosa e venenosa que diz: ser cabo-verdiano é bom, mas ser português — é melhor. Que ironia do destino e do pensamento crítico!

Denunciamos a opressão histórica, mas educamos nossos filhos nos moldes lusitanos. Enchemos a boca para celebrar o crioulo como identidade, mas exigimos deles um português académico que poucos em Cabo Verde dominam verdadeiramente. Porque, no íntimo, o que mais desejamos é fugir para o colo do tal pai que renegamos em 1975, mas cuja mão aberta nunca deixamos de buscar, mas orgulhosamente sem admitir.

Vivemos uma independência com o cordão umbilical intacto. Portugal saiu da administração direta, mas jamais deixou a nossa estrutura mental, económica e cultural. É como um ex-marido que expulsamos de casa, mas a quem exigimos que continue a pagar as contas da casa porque sozinhos não conseguimos. E o mais irónico? Precisamos mesmo — e fingimos que não, que trágico!

Se, hipoteticamente, perguntássemos num referendo: “preferes ser uma região
autónoma de Portugal com acesso pleno à União Europeia, em situações análogas às ilhas
Canárias em relação a Espanha”,
90% dos cabo-verdianos responderiam hoje que sim. Estranho, não? Lutamos por independência, mas sonhamos com a reanexação — pelo menos emocional — a um sistema que nos amplia as possibilidades e dilui as responsabilidades dos cabo-verdianos.

Então, valeram os 50 anos de independência? Teria sido mais honesto admitir que ainda não estamos preparados para a emancipação completa, estrutural e emocional. Reconhecer que essa tal “racionalidade dependente” nos serve melhor do que a pose de uma soberania infantil. Talvez tivéssemos feito melhor com autonomia interna, mas inseridos num espaço europeu maior, em vez de ostentar bandeiras e manter as mãos estendidas.

Mas isso exigiria humildade histórica e coragem intelectual. Implicaria dizer: “Sim, há méritos em sermos independentes, mas também temos de aceitar que Portugal ainda nos
sustenta — e talvez devêssemos construir a nossa soberania de dentro para fora, em vez
de fingir que somos verdadeiramente livres.”
E acima de tudo, que o maior ato de independência seria pensar, consumir e amar Cabo Verde — antes de qualquer outra coisa.

Assim, quando as luzes se apagarem neste 5 de julho, que a festa seja menos pirotécnica, como as vividas nas ruas do Mindelo em 25 de abril último, com a abertura das comemorações dos 50 anos de independência de Cabo Verde e mais introspetiva. Cinco décadas de independência podem ser celebradas como uma vitória ecológica e institucional, mas, na prática, só terão sentido quando se traduzirem numa soberania medida não pela percentagem de dívida convertida, mas pela força silenciosa de um povo que escolhe erguer-se por si mesmo e reconhecer o papel fundamental que Portugal tem
desempenhado nessa travessia no deserto chamada independência.

Só então fará sentido cantar “independência” com a consciência plena de que o presente e o futuro não
dependem mais de pedir, mas de ser e reconhecer quem nos ajudou. Continuamos a respirar Portugal, nosso país irmão e ainda bem que o fazemos, nosso eterno aleado. O cabo-verdiano mais honesto intelectualmente, saberá reconhecer isso.

*Licenciado em Direito pela Universidade de Santiago

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