Por Mário Matos
A manifestação promovida e organizada pelo “Sokols 2017” em S. Vicente no passado dia 5 de Julho, em que se comemorou o 44°. Aniversário da Independência Nacional, agitou as águas estagnadas da ilha e teve repercussões no arquipélago e nas comunidades emigradas de onde, aliás, vieram apelos à participação. Não será aqui que apresentarei a minha visão dos novos fenómenos que estão a influenciar fortemente a reconfiguração do espaço público e a questionar o minimalismo da nossa Democracia representativa. Novos na aparência pois, em se tratando de um processo e não de um acto que se esgota em si, as suas raízes se encontram, recuando no tempo, em factos aparentemente banais, mas cuja devida descodificação evidencia a sua verdadeira importância enquanto fermento de mudanças profundas. Não me refiro unicamente a S. Vicente.
É preciso um outro olhar, por exemplo, sobre as novas “culturas juvenis” urbanas, na sua multiplicidade de expressões, críticas, reflexivas, em processos de reconstituição identitária, construindo uma outra percepção de si, em confronto e em ruptura com o status quo e as narrativas quer do poder quer das classes ditas médias (das elites), cujas fracções se alternam no poder e na captura do Estado.
Não estando na ilha, embora fazendo sempre um esforço por se sintonizar com a realidade quotidiana da mesma, cruzando fontes as mais díspares, é preciso recuo para ajuizar bem a evolução desse movimento social. Por mor de razões, redobradas devem ser as cautelas e a humildade no perscrutar do feixe de fenómenos de aceleração da mudança e que se inscrevem num tempo “precipitado”, cujo campo de visualização mais rico são os bairros das periferias dos principais centros urbanos (os dos “invisíveis sociais”) mas, sem nunca descurar que me faltará o mais importante: o trabalho de terreno, a investigação/acção.
Contudo, mesmo num registo de superfície, é inegável que largos milhares de cidadãos vicentinos (vicentinos de diferentes ilhas. Quem conhece o cosmopolitismo vicentino há-de perceber essa afirmação) deram-se ao trabalho de sair à rua em protesto e manifestação contra o que consideram ser o descaso de sucessivos governos face aos problemas que condicionam ou mesmo tolhem o desenvolvimento da ilha. Assim, apontam o dedo tanto ao PAICV como ao MpD, sendo embora mais cáusticos com o actual Governo da Maioria MpD, o qual acusam de intencionalidade de prejudicar S. Vicente e de ter contribuído para uma acelerada queda económica da ilha em apenas três anos. Igualmente, críticas duras foram dirigidas à equipa da Câmara Municipal de S. Vicente, eleita nas listas do MpD, liderada pelo edil Augusto Neves, tendo sido este o foco do descontentamento dos manifestantes no que diz respeito ao exercício do Poder Local.
A luta contra um Estado estatocêntrico, favorecedor de assimetrias é o denominador comum das motivações desses milhares de cidadãos. Contudo, necessário se torna assinalar, na minha opinião sempre aberta ao contraditório, que havia e há diferentes motivações nos manifestantes, mas que encontram um ponto convergente na defesa de S. Vicente, acima das filiações partidárias, como na “manif” fizeram questão de realçar. É incontornável que a manifestação encarnou um mal-estar generalizado na sociedade face à “classe política”, aos partidos políticos e ao tipo de democracia representativa em que os eleitos são percepcionados como distantes dos eleitores e focados apenas na defesa dos interesses próprios e nos do seu partido. Sem dúvida que S. Vicente, nesse domínio, exprimiu uma opinião que atravessa a sociedade, fazendo mais uma vez o seu papel de barómetro.
A autonomia política, tal como defendida pelo “Sokols 2017” é a reivindicação mais fracturante e que desencadeou esperadas reacções de vários quadrantes. Aproveito para adiantar que se trata de assunto tão sério e relevante que debatê-lo à partida com acusações a esmo de “manhentos” e “manhentezas” é matar o debate no ovo…
Por outro lado, não será pela acusação de populismo aos promotores e organizadores de mais esta pujante manifestação da cidadania que os políticos, sobretudo os que exercem o poder, devem avaliá-la. Melhor e mais fecundo será tomá-la, com a tolerância que os valores democráticos impõem, antes de mais, na sua primeira significação: um sério aviso aos políticos, aos partidos, enfim, aos eleitos locais e nacionais, por parte de um espesso movimento de cidadania. Pelo menos é essa a minha opinião, de quem já desempenhou elevados cargos públicos e partidários, tendo ido a votos várias vezes, e aprendido com vitórias e derrotas, mais com estas que com as primeiras. As razões na origem das críticas à “classe política” e aos partidos remetem para segundo plano expressões de populismo a que, diga-se em abono da verdade, certos políticos em níveis elevados de responsabilidade também não se têm demonstrado imunes!
Se queremos combater o populismo – e devemos fazê-lo sob pena de perigar o processo de democratização – a “classe política” e, sobretudo, os titulares dos órgãos de soberania devem ser os primeiros a dar o exemplo. A demagogia, as promessas irrealizáveis, as tiradas populistas dos principais actores políticos e o tratamento mútuo de desconfiança e desqualificação entre os partidos e entre os políticos, abrem a porta ao populismo ameaçador da Democracia.
Não achei pertinente nem oportuno aprofundar aqui os posicionamentos do “Sokols 2017” com os quais estou em frontal desacordo. São divergências em algumas matérias de fundo e que estimulam o debate, o diálogo com respeito pelas nossas diferenças, porque ninguém pretende mudar ninguém… Deixo, também, para mais tarde algumas notas daquilo que considero mera espuma das “ondas de choque” das manifes promovidas pelo “Sokols 2017”, mas que merecem alguma atenção.
Entretanto vale a pena anotar que há um esforço de opinion makers da área política do MpD e os “franco-atiradores” de costume em impor o sentido de uma manifestação puramente bairrista, contra Santiago. “Análise” reducionista, sem pernas para andar e que confirma a dificuldade do actual poder em conviver com a diferença, interpretada como ameaça, não se importando de assim contribuírem de facto para a desunião dos cabo-verdianos. Ah! Ia-me esquecendo: o esforço ingente que o MpD empreendeu para colar o “Sokols 2017” e os seus principais dirigentes ao PAICV, baseado na ideia de que há uma rejeição do PAICV na ilha e, logo, a colagem conduziria à baixa adesão popular à manif, revelou algo muito interessante: o povo que manifestou é muito mais democrático que quem nos governa!