Denis Leite Rodrigues (CAMS/CGSS)
Introdução
A Operação Epicentro revelou muito mais do que um esquema de tráfico de estupefacientes em São Vicente. Ela expôs um sistema vulnerável, fragmentado e incapaz de reagir efetivamente à criminalidade financeira, apesar dos discursos políticos constantes sobre a prevenção e combate à lavagem de capitais. Este artigo analisa as falhas estruturais, os impactos sociais e econômicos e aponta caminhos possíveis para uma mudança real.
O contexto da Operação Epicentro
A investigação desmantelou uma rede criminosa capaz de movimentar milhões de escudos provenientes do tráfico de droga. Os fundos ilícitos foram integrados na economia local por meio de contas de terceiros, empresas e setores comerciais, com preferência por transações em dinheiro vivo. A operação evidencia como o tráfico explora vulnerabilidades estruturais do sistema de prevenção à lavagem de capitais.
Falhas recorrentes no sistema
Comparada com a Operação Troia, a Operação Epicentro mostra que Bancos, Seguradoras, Registos, Notariado, Advogados e Contabilistas continuam a negligenciar deveres legais. Os alertas anteriores não se transformaram em ação, reforçando a necessidade de supervisão firme por parte de reguladores como Banco de Cabo Verde (Banca/Seguros), IGAE (automóveis) e IGOTCI (imobiliária/construção).
A distância entre lei e prática
Apesar da legislação exigir diligência, monitorização e comunicação de operações suspeitas à UIF, a prática é superficial. Conhecer clientes e monitorizar operações funciona como formalidade, enquanto indicadores de risco são ignorados. O interesse em realizar negócios ainda se sobrepõe à prevenção, mesmo diante do impacto social e econômico que ficou evidenciado na sociedade Mindelense.
Vulnerabilidades concretas
Entidades pessoas singulares, que se identificaram como trabalhadores informais e desempregados
movimentaram grandes quantias (milhões de escudos) em dinheiro vivo e através da maioria dos Bancos
comerciais. Operações fracionadas foram permitidas, contas de terceiros funcionaram como “mulas”, e
funcionários do sistema bancário que facilitaram transações suspeitas realizadas nas agências. A falta de
cooperação institucional e de troca de informação aumentou a vulnerabilidade do sistema.
Impactos sociais e económicos
A operação revelou aumento de toxicodependência e criminalidade, sobrecarregando o sistema de saúde e
proteção social. Grandes quantias foram injetadas na economia real, comprando automóveis, imóveis e artigos de luxo sem verificação de fundos. O setor de táxis sofreu distorções devido à compra sucessiva de licenças a preços atípicos. Empresas canalizaram pagamentos para contas de pessoas físicas, sem cumprir obrigações fiscais, e indivíduos sem rendimentos formais apresentaram património significativo, evidenciando fraude fiscal que foi negligenciada no processo pelas autoridades responsável pela investigação apesar das últimas alterações da leitributária com relevância para o processo.
Setores mais vulneráveis
Os setores automóvel, imobiliário, construção, seguradoras e bancário apresentaram falhas graves. Os registos de veículos e imóveis ocorreram sem rigor, seguradoras carecem de mecanismos de deteção de operações suspeitas, e bancos ignoram indicadores de risco, facilitando fracionamento de transações. A supervisão dos reguladores continua insuficiente.
Alertas ignorados
A Avaliação Nacional de Risco de 2017 e a avaliação mútua do GIABA/GAFI de 2019 identificaram tráfico
estupefacientes, fraude fiscal e corrupção como ameaças prioritárias, recomendando limites para dinheiro vivo e reforço de controle. A Operação Epicentro demonstra que muitas dessas recomendações ainda não foram implementadas, mantendo o país vulnerável.
Discurso político vs. realidade institucional
Os milhões de escudos foram colocados, circulados e integrados na economia legitima sob uma lei de quase dez anos, enquanto o discurso público se limita a “estamos a trabalhar”. A UIF continua subdimensionada, com pessoal técnico insuficiente e salários pouco atrativos. A lei de Prevenção à Lavagem de Capitais ainda não foi aprovada em definitivo, o pedido revisões das leis do Gabinete de Recuperação Ativos(GRA) e o Gabinete de Administração de Ativos(GAB) ocorreram tardiamente. As mudanças frequentes na Polícia Judiciária na UIF ocorridas nos últimos anos fragilizam a resposta operacional eficaz.
Caminhos possíveis
- Rejuvenescer e fortalecer a UIF, aprovando a legislação que se encontra pendente há anos. É essencial porque trata da única entidade que a lei autoriza a aceder de forma tempestiva e célere a toda a informação financeira suspeita, sem necessidade de pedido de quebra de sigilo bancário, permitindo atuar rapidamente na prevenção e combate à criminalidade financeira e organizada. Reformas do sistema judicial já foram aprovadas, mas pouco ou nada chegou à UIF.
- Aprovar a nova lei de lavagem de capitais – Concluir o processo legislativo ainda nesta legislatura e que já se arrasta desde abril do corrente ano.
- Regulamentar limites para transações em dinheiro vivo – Implementar a recomendação que consta na avaliação nacional de risco de 2017 em que valores acima do limite devem ser obrigatoriamente efetuados através do para o sistema bancário, garantindo rastreabilidade.
- Disponibilizar técnicos especializados ao DCAP da PGR para apoiar Procuradores e reduzir carga administrativa.
- Reforçar supervisão setorial e capacitar entidades obrigadas, modernizando sistemas de monitorização e alocação de meios às unidades especializadas junto dos reguladores.
- Atenção especial a fraude fiscal nas investigações, com coordenação entre reguladores órgãos polícia criminal, autoridades judiciais e judiciarias e autoridades fiscais que devem assegurar formação especializada da fraude fiscal como crime conexo da lavagem de capitais.
- Reformar registos automóveis e imobiliários – Exigir comprovativos/contratos de venda, identificação rigorosa de proprietários, tomadores de seguros e usufrutuários e inibir o pagamento em numerário e exigir comprovativos bancários no ato do registo.
- Gestão eficaz de bens apreendidos – Permitir que viaturas e outros bens/meios apreendidos/arrestados possam ser usados imediatamente pelos órgãos de polícia criminal após avaliação do GAB mesmo antes do confisco definitivo, e controlar rigorosamente os leilões para impedir que regressem ao circuito criminoso e de preferência que sejam alocadas as forças de segurança. (ex. meios terrestres e anfíbios).
Sem execução firme e liderança clara, as vulnerabilidades persistirão.
Conclusão
A Operação Epicentro expôs fragilidades persistentes na Prevenção à Lavagem de Capitais em Cabo Verde, com impactos sociais, econômicos e institucionais significativos. O discurso político permanece distante da prática, mas para proteger a reputação, fortalecer o sistema financeiro e reduzir a atuação da criminalidade financeira e organizada, é essencial transformar palavras em ação concreta.
