Por: Alcides Lopes (PhD)
A música é a verdadeira dimensão da vida.
No final do mês passado, dia 25 de fevereiro, surpreendi-me com um post no Facebook intitulado “Teoria Musikal y Meiu Ton di B. Leza”. O referido texto, em kriolu, foi publicado na timeline da página Cabo Verde & a Música – Museu Virtual, no Facebook. Nele lia-se: “Obrigado Terreru e Djoy Amado! Mesmo que os leigos fiquem de fora dessa conversa, é importante que os que dominam o assunto estabeleçam este debate.”
À princípio, devo esclarecer à leitora e ao leitor que os argumentos críticos aqui apresentados não têm a intenção de ferir nem denegrir os ânimos alheios. Mas, antes, contribuir através de uma perspectiva crítica, para a construção do conhecimento musicológico mais amplo e diverso sobre o universo da Morna, à luz de alguns teóricos e acadêmicos reconhecidos no mundo da etnomusicologia, dos estudos críticos e interdisciplinares no campo da história da musicologia.
Evidentemente, não se pode [ainda] falar, tanto em termos disciplinares como em termos fundamentais diretrizes e metodológicos, que investem a produção do conhecimento científico especializado, quiçá na prática, de uma história da música de Cabo Verde. Com isso não pretendo obliterar nem reduzir a importância de trabalhos importantes publicados pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro e do Disco, com patrocínio da Direção Geral do Património Cultural e apoio financeiro do FIPC – Fundo Internacional para a Promoção da Cultura (UNESCO).
Refiro-me às coleções como “Tradições Orais de Cabo Verde”, incluindo as três obras de magnífica recolha das letras e cantigas de finason, das cantadeiras Bibinha Cabral, Nácia Gomi, Guida Mendi, da autoria de Tomé Varela, publicadas entre 1988 e 1990; à obra A Música Tradicional Cabo-Verdiana – I (A Morna), da autoria de Vasco Martins, publicada em 1989; e, tampouco, pretendo “esquecer-me” da coleção “História da Música em Cabo Verde” na qual foi publicada a obra Os Instrumentos Musicais em Cabo Verde, através do Centro Cultural Português, Praia e Mindelo em 1998.
Não obstante, neste ensaio não é imprescindível mencionar a variedade de obras literárias, jornalísticas ou sociológicas que se propõem a explorar o fenômeno cultural das músicas tradicionais de Cabo Verde. Todavia, levando em consideração que grande parte delas se encontra imbuída de uma presunção “filosófica” que eiva toda a estrutura ao se infiltrar nas conjunturas metodológicas dos processos de produção, interpretação dos sons, da estética e dinâmica musicais, acho pertinente propor esta reflexão sobre algumas noções, processos e problemáticas inerentes ao estudo da música nas nossas sociedades.
À semelhança do que aconteceu no Brasil, durante todo o século XX, a elite intelectual cabo-verdiana sempre defendeu a ausência do racismo no arquipélago. A imposição de uma identidade homogênea, como herança “bendita” do tempo colonial, busca anular as diferenças linguísticas e culturais. Esta condição depende da presunção de uma aproximação da mestiçagem predominantemente europeia, como a socióloga Eurídice Monteiro nos conta no capítulo 4 da sua tese publicada pela Uni-CV, em 2015.
De facto, Miguel Vale de Almeida defende o argumento de que Cabo Verde é um país que adotou o processo sociocultural de crioulização como construção de identidade, projeto de nação e identidade cultural. O próprio Francisco Xavier da Cruz, nos anos 1930, defendia que aos cabo-verdianos competia criar o seu próprio arquivo. Embora fossem condenados, por tal ousadia, nunca deveriam parar de escrever tudo o que pensavam sobre a Morna.
Porém, não devemos olvidar o facto de Vasco Martins, meio século mais tarde, sugerir que existe na Morna determinada complexidade de escrita e certa analogia com o proceder musical erudito, sobretudo nas particularidades harmônicas, acordes de passagem, os baixos corridos e a leveza rítmica. Contudo, quando consideramos peças de compositores brasileiros como João Pernambuco, Quincas Laranjeiras, Hernani Figueiredo, Zé Cavaquinho e outros, por exemplo, contemporâneos de B. Leza, os níveis de complexidade e erudição, entre a Morna e o Choro, se revelam imensas, senão incompatíveis.
Para todos os efeitos, o indivíduo pode ter todas as habilidades e aptidões para aprender música, mas, a sociedade na qual ele se cria forma-o culturalmente mais do que se imagina. Em outras palavras, quando as instituições públicas de ensino investem na educação artística e musical de base até ao nível superior, a qualidade dos seus artistas, músicos, compositores, poetas, críticos, cidadãos e público é notavelmente diferenciada.
Portanto, se formos levar em consideração os argumentos principais de Martins, i.e., a pretensão de estabelecer uma analogia entre a Morna e “o proceder musical erudito”; um suposto comprometimento estrutural com a atração tônica-dominante-tônica; a referência à qualidades do virtuosismo musical, cairemos em profundas contradições, quando percebemos que nas ilhas de Cabo Verde, por exemplo, a educação musical, até hoje, nunca fez parte das prioridades dos ministérios dedicados à educação da população e ao desenvolvimento da cultura.
A meu ver, o argumento destoa da mesma forma como o autor procura inviabilizar o violino como possível instrumento para se compor Mornas, na medida em que insiste na tríade, essencialmente menor, como pedra de toque fundamental para tal empreitada. Evidentemente, a Morna, tal como o Samba, pode começar a ser composta com um simples bate-bate numa caixinha de fósforos, um motivo musical e um corpo que dança.
Contudo, não restam dúvidas que, para qualquer cabo-verdiano, existe um lugar-comum nas letras da Morna que faz do violão o confidente do compositor. Aqui, tomei a liberdade de parafrasear o etnomusicólogo Carlos Sandroni, precisamente, a primeira frase da Introdução do seu livro, publicado em 2001, Feitiço Decente: transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933).
Cartola talvez seja o compositor brasileiro mais representativo desta dimensão de humanização do instrumento por parte do poeta que sofre e, ao seu violão, faz confidências indiscretas. A indiscrição consiste no facto de o violão, por ser literalmente uma caixa de ressonância, não guardar segredos para si. Antes, pelo contrário. Sandroni nota que “as confidências do compositor se amplificam, se transfiguram e ecoam nos lábios e corações de milhões de ouvintes.”
Contudo, o etnomusicólogo brasileiro alerta que há possibilidades da indiscrição do violão ser algo mais complexo do que se supõe. Sandroni refere-se à adaptabilidade que o violão proporciona ao compositor, na medida em que permite dar à sua intimidade uma dimensão coletiva e nos permite, como musicólogos, aceder a versões condensadas, cujas características são decisivas, no nosso caso, para o fenômeno diverso em si que é a morna.
A levada da Morna ao violão, o murmurar dos seus bordões e txoradinhas, bem como a batida rítmica e preguiçosa, porém firme na marcação, do cavaquinho, adotada posteriormente, crescem inerentemente à construção da pessoa cabo-verdiana. O mesmo argumento pode ser usado com relação à Coladeira e, em ambos os casos, carecemos de estudos sobre a importância da rádio e os efeitos das tecnologias de gravação e difusão, do início do século XX, nas transformações realizadas no coração dos ritmos tradicionais de Cabo Verde.
Os modelos rítmicos de acompanhamento, susceptíveis de certos graus de variação, utilizados quando a canção a ser acompanhada pertence ao gênero “samba”, “morna” e/ou “coladeira” se beneficiam de abordagens diversas e historicamente contextualizadas. Neste contexto, basta escutarmos gravações destes gêneros feitas em épocas diferentes e em lugares variados para percebermos sutilezas ou diferenças crassas que, por sua vez, resultam da dinâmica das próprias condições de criação.
Nesta esteira, não adotamos nem a musicologia comparada nem outra disciplina convencional cujas diretrizes sejam exclusivas para a demarcação de algum tipo de manifestação de superioridade técnico-histórica baseada nos princípios filosóficos do positivismo burguês euro americano. Antes, procuramos entender as diferentes levadas da morna, não a partir de uma procura transcendental do belo e do virtuoso no sentido vitoriano, mas sim, a partir de uma análise das apropriações e transformações operadas no seio da própria tradição, com o passar dos tempos, por atores sociais comuns.
A batida do samba, como reconhece Sandroni, ou a levada da morna ao violão, não são simples fundos neutros sobre os quais a canção passeia com indiferença. Na morna, a levada diz muito sobre o conteúdo da canção. E, não para por aí. As dimensões dos instrumentos tendem a conferir níveis de profundidade diferentes para os graves e médios. Este aspecto também está diretamente associado à determinação das afinações. Vasco Martins comentou recentemente num post no Facebook sobre a variedade de afinações e ambientações que os mornistas podem ativar a partir da sua relação com seus instrumentos. Nas condições livres de afinação, raramente o músico optaria por uma afinação de 440mhz. Geralmente, a afinação tende a repousar um pouco abaixo da medida convencional.
Portanto, no post mencionado no início deste ensaio sobre “Meiu ton di B. Leza”, no qual se faz referência ao empréstimo modal e ao dominante secundário (V do V) na tonalidade de Mi menor, os autores pecam menos por insistir numa teoria com grandes probabilidades de ser falha e estereotipante, do que o seu insucesso em caracterizar o evento musical a que se propõe descrever dentro de uma estrutura mais abrangente da linguagem harmónica do tonalismo.
Refiro-me às lacunas relativas ao entendimento das dissonâncias ornamentais que agem como dispositivos contrapontísticos, portanto, horizontalmente, através dos quais a harmonia flui globalmente. Bochmann, em A linguagem harmónica do tonalismo, 2003, explica que as dissonâncias ornamentais possibilitam a produção da textura musical, sendo possível utilizar de vários ornamentos de acordo com o efeito almejado através das dinâmicas musicais: terças e sextas paralelas são preferíveis; enquanto as segundas e sétimas paralelas soam demasiadamente dissonantes; as quartas soam vazias; as quintas e oitavas paralelas devem ser evitadas; etc.
Segundo a linguagem musical do tonalismo é, igualmente, comum a troca de notas entre duas vozes realizada com notas de passagem. Outros aspectos fortes do tonalismo são os ornamentos da subdivisão forte e fraca do ritmo harmónico, através dos quais, a nota de passagem, o ornato, a apogiatura são os elementos mais comuns. Podemos ainda mencionar os retardos e outros ornamentos menos comuns como a escapada e a antecipação.
Resta-nos ainda fazer menção a outra perspectiva de interpretação musicológica, considerando o campo da linguagem harmônica do tonalismo, conhecida como dissonância integral, a qual nos remete aos acordes de sétima, nona e aos acordes sem a fundamental. Neste contexto, as notas cuja função desempenham dissonâncias integrais, são aquelas que se fundem com as outras notas do acorde de maneira a assumir um papel essencial na definição do campo harmónico.
Os acordes de sétima parecem ter origem no amplo uso das dissonâncias ornamentais na pulsação do ritmo harmónico e, curiosamente, não são raras as ocasiões em que nos encontramos na difícil tomada de decisão sobre qual a análise mais acertada: a que considera a sétima como parte integrante do acorde; ou a que explica o contexto através de dissonâncias meramente ornamentais. Para todos os efeitos, a análise musical mais acertada atrela-se às etapas de origem, resolução e realização, neste caso, dos acordes de sétima.
À pessoa leitora atenta, os argumentos aqui apresentados sugerem não uma invalidação das ilações do post comentado neste texto, mas antes aponta para caminhos que complementam a dimensão mais compreensiva em torno de possíveis análises sobre música tonal, tonalidades e tonalismos próprios da música.
O que precisa estar claro na compreensão deste texto é que o termo tonalidade não é consensual, retêm as suas ambiguidades, e se aplica tanto às músicas ocidentais quanto não ocidentais, ou ainda nas tradições musicais ocidentais, o termo se restringe à organização harmónica da música do “período da prática comum” (1600-1910) ou deveria incluir toda música que evidencia a diferença básica entre consonância e dissonância.
Para alguns teóricos, o termo “tonal” descreve não somente a arte musical ocidental dos séculos dezoito e dezenove, mas o rock, folk, jazz, impressionismo, minimalismo, música medieval e renascentista e ainda uma boa variedade de música não ocidental. Não obstante, quando levo em consideração os argumentos de teóricos africanos notáveis como Kofi Agawu, citado nos meus trabalhos acadêmicos, não posso evitar a problematização que ele faz do uso da tonalidade como forma de dominação ocidental, ao sustentar que uma emancipação pós-colonizadora requer um redimensionamento da influência europeia.